10/12/19

os buracos fecharam ou nunca existiram

 10/12/2019

"Assim, estamos hoje mortos demais para viver,
e por demais vivos para morrer."
Byung-Chul Han

                                             


                                                                   .            .              .

ele precisou amar o rachado sujo das ruas para inventar um jeito de viver.
era difícil. mas ainda havia um pouco de espaço para a água passar, junto com algumas bolhas de ar.

a cidade era um grande funil. em dias mais otimistas, poderia ser um filtro ou até mesmo uma peneira. mas no grosso da semana, sem dúvida funil. talvez informe, talvez de um metal muito amassado e retorcido, sem a circularidade da figura, era no entanto muito realmente um funil.

dureza de alguns elementos para transportar a moleza de outros
e o tal do buraco
por onde os elementos, espremidos, caem e se abismam,
espraiando paraísos escuros que, evidentemente, são irreais.

"tudo culmina aqui. nessa ferida. aqui o desejo é obrigado a fundir-se com a ordem.

mas já não encontro o ponto a que me referia.

certo. talvez encontre outro amanhã."

esse encontro lhe dava algum sentido de movimento, ainda que precário. servia para viver.
mas por falta de força, ausência de tamanho ou esquecimento de cor,
chegou um dia que essas últimas frestas também fecharam.

então a cidade, que já era cerebral como uma dor de cabeça, passou a ser apenas um vocabulário. ônibus, apartamento, a grande metrópole cultural, o preço das passagens e dos ingressos, o mundo.
a cidade ficou trancada nesse caça-palavras pouco divertido, e tudo aquilo que o rodeava, toda aquela massa de gente e de enormes documentos, toda a realidade, passou a ser apenas um espelho. liso.
nem dava para saber se havia ou não distorção.

os buracos fecharam? algo como uma força física ou sísmica pode tê-lo feito. ou talvez fossem falhas intencionais que sua percepção eufórica colocava naquilo que sempre foi um espelho, e a euforia tivesse quimicamente chegado ao fim. ninguém pode saber. mas ambas as alternativas são coisas fracas, frias, como discursos científicos sobre a composição do cimento ou o ponto de fusão da sílica.



o que realmente ficou diferente depois desse alisamento ou espelhamento, não foi a nova reflexão filosófica a respeito da ontologia da depressão e da angústia, que agora o acompanhava. não. é um peso que surgiu. um vazio. uma coisa concreta como um corpo. algo que matou-o mil vezes antes, de modo intermitente, mas que agora era contínuo. uma duração que se instalava e passava a habitar o existir como uma essência.

os buracos fecharam ou nunca existiram, o movimento cessou, e ele esqueceu da vida. mas ninguém o matava. estava a ser morto pelo seu próprio reflexo. estava sendo morto. a vida é essa dor. não há nada além. os prédios são espaços determinados, onde se pode estar dentro. ou fora.