29/09/19

o fantasma e a loba

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29/09/2019

Para o filme “Roma” (Alfonso Cuarón, 2018)

 

Quem cria quem? Existe algo como alguém que nasce e faz nascer. Nesse espaço que se abre, existem olhos e espíritos. As mãos e o cuidado se originam e se encerram na mesma Terra, num outro Tempo.
O pensamento da Terra pensa ao ponto de não existirem almas. Não. Ao corpo que se conhece, não sobra tempo para almas. Por isso os fantasmas, estes obsessores.

Sob a superfície, fantasmas lutando para emergir, lutando em nossas gargantas modernas para fazer voltar o tempo. Acotovelam-se pelas vias expressivas tentando fazer reviver memórias de bom e mal. Gemidos mudos de angústia, de moralidades e de essências, uma fauna de fantasmas. Toda uma convulsão. Diversidade de mortes. 

Mas os fantasmas não chegam a existir. São apenas ânsia de vômito, pura projeção que se engendra num ventre doente e cerebral; na dor, na suspensão abismal que emerge como refúgio no cume violento dos momentos, por um instante, para então voltarem a nada, instantaneamente. E nunca os vimos! Não nascem, não morrem, apenas furtam a vida de si mesma. São medo. São medo! 

Os fantasmas das pessoas, dos animais, das coisas da Terra, enfim, as faltas de pátria, os projetos de pátria. As promessas de pátria. Já não fossem suficientemente insalubres, enquanto estátuas de inexistência, esses fantasmas ainda são tristes, frustrados. Nunca chegarão a tocar, a cheirar o molhado da rua suja ou limpa da terra. Não tem línguas para sentir o que se movimenta sobre as peles e as crostas, nem mesmo tem voz para indulgenciar a consciência. São apenas palavras em anestesia, linguagem revolvida, convulsionante.

Enfim, não. Aqui e em qualquer realidade, exprime-se tudo, expressa-se, e a única coisa que falta, mesmo, é o valor dos fantasmas. Aqui, eles não se consagram nem se transam. Aqui não se consagram templos burocráticos, construídas a partir do anti-material humano.

Aqui e agora passam ondas, montanhas, frutos de existência. Concreto, abstração, problemática. Aqui é duro-mole, é fato-ficção, fricção-deslize. Aqui é a situação das mulheres, a desventura das mulheres e dos chamados homens. É o concreto e não se entende ainda o que é. Não se sabe muito, perto do que se apresenta nessa quimérica demonstração de realidade. Cidades-família, Estados particulares, casas-grandes famintas viciadas em obsessão em devoração das forças, empalhadoras dos bichos vivos. Quimera: aqui e agora as pessoas-mesa, os cantos de sala sociais, sujeira poética, potência mortal administrada pelas empresas da ordem e do progresso. É isso que se passa, é isso que se dá à existência. Aqui e agora: a Guerra sã! Guerra querida, odiada! Máquina desejante! Força das tempestades de carne e metal, onde as nuvens de cinzas se encontram concebendo raios de cor! É aqui e agora!

Ei! Você me ouve? Por favor, me ouça. Estou pedindo com todo o amor que não conheço.
Por favor! Peço-te: não se esqueça. Não fique aí, se esquecendo. Você se larga e se esquece continuamente. Rotineiramente. O metódico protocolar cassado do despachado catálogo. O semanal, a organização, o fármaco injetado nas veias, nas avenidas em coma, mantida por aparelhos celulares. É o que fazes. Fica se esvaziando em universos paralelos particulares, em nomes maternos, faltando e amando e apaixonando úteros protéticos. É medonho! Parece que você tenta alcançar a artificialidade máxima - a pureza - que, ironicamente, nunca existiu, assim como você. Então, eis a minha atitude: não mais te desejarei. Hoje eu fico louco, hoje eu te acuso! Tu inventas e reinventas, em forma de violência, a dor extrema de quem foi arrancado da plenitude ctônica. 

Você é Deus. Mas está ficando Sozinho, frígido. Porque esquece cotidianamente que quem criou a vossa mercê foi o Barro.
Então eu te pergunto: quem cria quem?

O céu está pálido. Você não me responde e também nem chega a se afetar. É porque te abandonaram a coragem e a inocência de criança. É porque o corpo nunca te tocou. Agora estás aí, estátua, sem mármore, liso como uma idéia, cheio de si. Residente, corrigido, certificado e significado.

Contudo, ainda alguém respira. A esperança é de qualquer coloração e mais. Vai até as frequências do imperceptível, perturba até a transparência em que repousam os fantasmas. A esperança, a fertilidade indomesticável, essa ventania viçosa de montanhas e vielas e casas abandonadas. Essa força respira (-se) e resiste e contesta a estrutura. Corrói qualquer contorno, qualquer documento, taxa, medição, código... corrói até mesmo a invisibilidade que sobre ela tentam projetar. Mais do que isso, ainda mais absurdo, ainda mais mágico, ainda mais extraordinário do que isso: ela te perdoa. E te ensina. 

Vai ver você foi apenas um excesso de arquitetura... Quem sabe? Quem sabe não fostes algo, quem sabe até tenhas existido! Não se saberá. E o não-saber é natural, porque é fértil. Fértil e forte.

Ouço uivos de loba. Canina é a presença das matas e dos morros, ao criar tudo que inspira, acolhendo, de coração selvagem, até mesmo a doença abissal! Até o ingrato fantasma, vai ter uma nova oportunidade. Ainda que a eternidade se excremente completamente através da cloaca cósmica, ainda que o tempo se canse e hiberne, ainda assim terás, ó Ausência, a próxima chance para nascer, comer e brincar. Ainda poderás devir loba, viver a terra e morrer no espírito. 

Nos encontraremos. Aqui, na corrente da consistência e da continuidade aberrante. Verás então que tudo - as mãos, o cuidado e o carinho - germina e encerra seus ciclos na mesma Terra, em outro Tempo. Porque, afinal, é assim que eu posso falar de você. Só assim, havendo uma nesga de existência, podemos nos referir a você que é dor secular! Que é doença infernal! Pois apenas sendo também teus filhos e tuas filhas, apenas sendo também tua cria, só assim  nós podemos nos voltar para ti e, em gesto de grande generosidade, te matar.

28/09/19

um pensamento sobre ídolos

 Começo de 2019

 

A natureza de um ídolo é a traição. Qualquer ídolo que você pense ou queira torná-lo assim, um ídolo, ele irá te trair. Apenas deve-se esperar o tempo necessário. Entenda: não porque é um mau ídolo. Aliás, fosse um mau ídolo, o processo todo seria mais fácil. Mas não é isso. Justamente os grandes ídolos, os que tem maior densidade da substância de ídolo, são os que estão inclinados a realizar a maior traição aos seus idólatras.




Quem, o que são ídolos? Homens, mulheres, mitos e semideuses, todos com seus grandes atos. Todos tem sua assinatura gravada na ressonância do tempo. É isso, certo? Seja por causa de uma ação revolucionária, seja porque realizaram magníficas obras artísticas, seja porque conseguem balancear uma dieta impecável com a manutenção de um brilho divino no cabelo e ainda sair sem cara feia nas mil fotos. O que os ídolos tem em comum, além e antes de serem traidores, é porque são a expressão de um valor fixado nas bases de culturas ocidentais, sem o qual uma subjetividade a ela aderida, colapsa. É o valor do livre-arbítrio construído, a conquista da liberdade, a virtude heroica. Ídolos por vencerem as dificuldades impostas pela matéria bruta, triunfarem sobre uma pré-concebida selvageria natural do mundo e assim propagarem algo de (supostamente) essencial da presença humana na Terra. Os ídolos são aqueles que sintetizam uma idéia de livre-arbítrio e sempre estão atrelados a realização de algo difícil. Precisamos deles para manter-nos dentro da nossa visão de humanidade. São aqueles que, à partir de suas forças próprias, de sua virtude própria, seja essa uma virtude intelectual ou física, enfim, à partir de sua propriedade individual, realizam um ato que transforma o mundo todo, ou pelo menos a parte do mundo que importa para quem o idolatra. São as provas cabais do sucesso humano. Mas como podemos sustentá-los assim? Do que são feitos? São de carne ou de mármore?

Depende. Existem aqueles ídolos do atletismo, cujo esforço, disciplina e cuja beleza de tentos nos faz renovar a crença na capacidade de realização humana. Outro exemplo, e talvez o mais comum, é do ídolo exemplo-de-vida. Geralmente alguém que começou no antro da brutalidade material - contextos sociais precários, normalmente associados à falta de civilidade - e conseguiu triunfar, destacando-se e adentrando na ágora do sucesso humano. Por último, outro tipo são os ídolos intelectuais. Os criadores de idéias. São os produtores do texto ou da teoria eficaz, ou seja, aqueles que atingiram a matéria com suas mentes. Síntese da civilização, do humano civilizado, que vence a animalidade natural. Estes são perigosos. Carregam em si toda uma simbologia da iluminação.

Gostaria de chamar atenção para o que me parece ser a melhor ilustração de seu poder de ídolo intelectual: aquelas frases de efeito isoladas que ficam se propagando nas mídias. Vemos chegando pelo céu aquelas grandes frases, carregadas por aspas e com um Nome pendurado abaixo; essas frases que, carregando o devido nome e a devida densidade lógica, nos causam grande impacto e nos tocam o corpo da alma. Pois tal é a potência da palavras. Mas acontece de vincularmos toda essa potência à esse nome, efeito da mera leitura de uma frase ou trecho genial no facebook. Fixa-se, mesmo que num pequeno grau, essa potência numa imagem e então ela passa a ser poder. E esse acúmulo vai aumentando conforme chegam mais e mais frases e idéias isoladas e historinhas de genialidade. São esses os alimentos que atualmente estão à disposição da nossa fome de ídolos "reais". Sabemos, pela nossa educação secular, que os heróis fictícios são apenas metáforas, e que no mundo real, feitos muito menores são mil vezes mais significativos, porque são reais.

Chega a um ponto que os ídolos tem o poder de sustentar o que nos faz crer na humanidade. Toda aquela carga simbólica de realização, de heroísmo, de esperança na inteligência, tudo isso vinculado e sustentado por um único nome-rosto. É bastante perigoso. Uma árvore-da-vida com uma raíz finíssima. Quanto tempo demora para descobrir alguma contradição entre a coerência infinita de uma lógica e a pessoa humana que a concebeu? Não muito. E não é apenas essa noção de humanidade que está refém desse cordãozinho umbilical.

Einstein, Marx, Caetano Veloso, Osho, Prem Baba, para citar alguns possíveis ídolos pop da classe média. São todos homens aparentemente dotados de grande consciência, certo? São grandes ídolos, bons ídolos. E eis que, quando assim o são, eis que grande parte daquilo que me faz dar sentido ao mundo está sustentado por eles. Pois eu, aqui no meu mundinho, onde abundam frustrações e faltam grandes feitos individuais, mundinho infestado de exemplos da mediocridade humana, tenho assim a prova de que, pelo menos em algum lugar, existem pessoas expressando esse heroísmo. Heroísmo, um sujeito capaz de mudar o mundo para melhor. Como foi dito, um valor fundamental para uma cultura ocidental que, ora messiânica, ora individualista, atravessa hoje e há um bom tempo a maioria dos corpos na Terra. Mas não é tão importante que eu ou que meus amigos sejamos heróis. É importante que em algum lugar, e principalmente longe dessa realidade cotidiana, cheia de sujeira e contradição, eles existam. Ora, aqui eles teriam que lidar com a fila da lotérica! Eles apareceriam no meu campo de visão formando uma imagem junto com aquele logotipo horrível da loja de smartphones! Não, seria péssimo. Além disso, com essa distância, posso fazer aqui a minha parte, livre de leões e aventuras fatais, enquanto os grandes arautos da humanidade triunfam, enquanto sustentam a minha imaginação fora de qualquer sombra de materialidade. É uma importância profunda para uma subjetividade de fundamento, de arborescência, em que muito está sustentado por pouco. Mas está claro que isso apresenta um grande perigo. A traição fica, assim, sempre à espreita.



Não aguentamos muito tempo sem alimentar nosso imaginário idólatra. Hora ou outra precisamos beber da fonte, renovar o sentido da vida para além das esteiras de asfalto que são o nosso dia-a-dia. Até porque a vida nos demanda, mesmo que não queiramos ver assim, feitos enormes e para realizá-los precisamos ter algum "chão" subjetivo: algo de sólido, alguma ideia que preencha o niilismo assombroso que mitiga a nossa força de desejar e nossa vontade de fazer. Então, quando não conhecemos outro remédio, vamos atrás dos ídolos, que chegam a nós na forma de ecos luminescentes de algum feito longínquo. Afinal, são nomes-rostos, memórias coletivizadas. Um bom meio de nos ligar a ídolos do tipo intelectual, por exemplo, é a leitura de um grande livro. Lemos um livro por sua eficácia prática? Quanto da leitura é apenas a alimentação da ideia de genialidade? Primeiro, queremos manter o autor no patamar de uma consciência pura, e assim manter dentro do real a possibilidade da coerência ilimitada. O gênio. O humano iluminando o mundo. Depois queremos, ao entender algo do  livro, sentir que pudemos ter um contato, mesmo que pequeno, com esse plano iluminado. Até porque precisamos de provas dessa iluminação na nossa própria experiência. Mas, claro, ler um livro é um privilégio danado esses dias. Necessita de tempo e espaço e silêncio: tudo aquilo que falta à maioria da população. Então, imersos no cotidiano - composto em grande parte de uma grande, frenética fuga do vazio existencial - devoramos frases salvadoras, exemplos de vida, atletas olímpicos, enfim, imagens que funcionam como bombas de sentido. As frases, as músicas, as imagens, os fatos biográficos... são exemplos rápidos de genialidade e heroísmo; alimentação rápida do imaginário, fast-food subjetivo. Isso funciona bem hoje em dia. As redes sociais são um reservatório inesgotável de luzes e gênios. Elas filtram de todo o conteúdo disponível a parte mais "gostosa", o neon mais bonito, que chega até nós quentinho e bem apresentado. E como estas redes estão razoavelmente conquistando um estatuto democrático, acabam mesmo ajudando a manter a população em contato com seus ídolos em sua forma histórica atual: ecos de luz, imagens, estímulos. Sejam os ídolos da novela, do esporte ou da academia.

 Não menos importante é o caso de quando criamos ídolos à partir das pessoas reais que conhecemos. Amigos, namoradas, artistas. Fotografamos um close certo e pronto. É muito comum que aquela lacração, aquela realização que por um momento nos parece perfeita ganhe uma qualidade heróica em nossa mente. Mas a partir desse ponto, a pessoa passa a ficar menos visível em detrimento do ídolo em que "ela" se tornou. Ela não se tornou nada. Ela estava no fluxo. Nós que a recortamos com nosso desejo. E assim passamos a agir como quem olha um quadro, criando uma distância onde não havia e possivelmente desumanizando nossa relações, num sentido "positivo". "Ah, mas a imagem que tenho de ti é tão perfeita!"
É exatamente esse o problema.

O problema é que essas imagens tem a espessura e a densidade de.... imagens. São recortes arbitrários da vida de uma pessoa, secções artificiais e sem vínculo seguro com o real. Nós temos esse péssimo hábito de colocar as imagens na frente das coisas enquanto corpos. E geralmente é bem pior. Chegamos ao ponto de colar essas imagens diretamente na nossa retina. Lentes ideais filtrando o mundo, afastando-nos de sua corporeidade errante, feita de pessoas. Pessoas são "erráveis", contraditórias, mas também densas e atravessadas de tantas subjetividades que só a singularidade, enquanto entrecruzamento de particulares e universais, pode equivaler. Sua realidade sempre escapa de qualquer imagem. Mas chegamos a nos satisfazer com essa realidade imagética, até porque essas nossas imagens são bastante complexas e intrincadas, nos parecendo suficientemente "reais". Contudo, elas não tem a textura, a imprevisibilidade inevitável do corpo, seus relevos, sua topografia marcada de história e natureza. E mais: as imagens, pela arbitrariedade de sua gênese, são projeções de nós mesmos. Acaba que elas funcionam como espelhos opacos, estas superfícies com a qualidade de refletirem a informação fotográfica que os atinge. E esses espelhos estão cada vez mais opacos, uma reação que nos conduz sutilmente a um maior aprisionamento em nós mesmos, o que no limite nos levará a uma individualidade absoluta. Estamos numa sala de espelhos, um espetáculo de luzes em que uma imagem remete sempre a outra. E aqui os ídolos são perfeitos. Progridem, triunfam, atestam e provam (o que queremos): a luz existe em estado puro. A questão é que a luz por si só não satisfaz. Não é tão saborosa quanto um alimento, uma aventura ou um abraço, por exemplo. Sua potência de nos abastecer tem um limite "claro". Em algum momento a tentação nos vence e vamos querer tocar essa imagem tão linda. Vamos querer encostar na pele de nossos heróis, nossos ídolos. É aí que as coisas mudam drasticamente. Para nossa profunda frustração, o que acabamos tocando é sempre o espelho: frio e liso. Alguns se arriscam com mais vontade e o espelho acaba quebrando, revelando assim sua materialidade brutal.

Quando uma pessoa mais destemida decide pesquisar sobre ou acompanhar a vida de seu ídolo acaba sempre encontrando um episódio que corrompe a imagem. Ouvimos dizer que Einstein mantinha uma relação quase senhorial com sua esposa ou lemos sobre um caso em que o iluminado Osho foi um violentador e ficamos confusos. Isso citando apenas os ídolos da inteligência. Poderíamos aqui citar o recente caso do bendito jogador de futebol, que causou uma enorme onda de reações nas redes. O que nos importa é que há tantos casos desses quanto existem ídolos. Procurando o suficiente em suas biografias ou esperando o tempo necessário, encontraremos o famoso "podre" e é aí que os nossos ídolos nos traem. É só questão de tempo.
Mas não precisamos nem ir tão longe, com esses exemplos trágicos. Pois o simples contato com a corporeidade de um ídolo já é o suficiente para quebrar o feitiço. Vê-lo em sua realidade prosaica, comum, mesmo que não esteja realizando nada de terrível. Já é uma sujeira. Por menor que seja, é um borrão no símbolo, no brasão. E é muito mais difícil ignorar uma sujeira quando ela é isolada, no meio de um oceano de pureza e brilho. 

Me parece sensato que, na impossibilidade de abolir as imagens, diversifiquemos nosso gosto. De vez em quando, pintemos com pincéis mais brutos, com gestos mais condizentes com a nossas vontades, e que o sujo e a sombra esteja sempre presente em nossos símbolos.

Quando saímos do plano imagético e caminhamos no plano do que é corpóreo, abundam os movimentos, os gestos, as mudanças drásticas de direção e velocidade. Alguns recuam, reconstroem o espelho. Outras continuam caminhando, e o pensamento, alimentado por essa nova realidade, começa a ser infestado de contradições, que brotam como ervas no asfalto. Às vezes ficamos absolutamente catárticos com a absurdidade do real, fitando em choque as diabólicas plantas que racham concreto. Outras vezes simplesmente somos preenchidos de sentido. Nesse caso, é que se está mais próximo da alteridade, mais na borda de si mesmo, mais em contato com a vida na sua pulsação perigosa e maravilhosa, mais próximo da realidade e sua factualidade impessoal.

Mas o que penso é que sempre se pode remodelar a imagem e criar para si uma nova versão do velho esquema. Limpar o sótão é trabalhoso, mas temos a tendência de preferir esse trabalho ao outro que é o de abandonar o velho lar e embarcar no fora. E por isso eu digo que me assusta o quão patéticos parecemos, nos sentindo traídos por uma imagem que nós mesmos criamos. "Miseráveis traidores! Jogaram na lama minha... minha... minha dependência". É duro, mas muito comum, que sintamos uma profunda angústia vivendo à base de ídolos, já que vem a ser bastante natural que as pessoas reais a que eles se referem destruam, com seus corpos desejantes, essa estabilidade. A subjetividade investida toda em símbolos é sujeita a profundas mortes, pois o real corpóreo não tarda e rompe com facilidade nossos esquemas imagéticos. Isso dói.

O que eu posso dizer, agora, me contradizendo, é que os ídolos não nos traem. Fiquemos calmos. Não nos traem porque não podem: eles são exatamente o que pensamos que eles são. Como é razoável de se pensar, sua natureza não lhes possibilita tal ato: são imagens fixas: estátuas: experiências cristalizadas num museu da memória. O que erra não são eles, coitados. Nem mesmo em movimento estão. O que erra são as pessoas às quais vinculamos essas imagens. E que bom. Isso, para mim, tem mais valor, pode vir até a acumular mais admiração em meu coração. 

Minha proposta é que, de vez em quando, prefiramos uma pessoa estranha a um símbolo perfeito, pois a diferença é um nutriente vital. Já os ídolos... bom, os ídolos são exatamente o que pensamos que eles são. Agora, quando é que vamos nos emancipar de fato? Apenas quando os ídolos acabarem? Talvez não acabem tão cedo. Até lá, podemos agir diferentemente e, ao invés de os replicarmos sistematicamente, os vandalizarmos cotidianamente. Não as pessoas. Os ídolos.

metal e apartamento

 Em algum momento de 2019

METAL E APARTAMENTO

no décimo andar
deixando de existir
restou apenas a janela

uma tela de imóveis

ver
ver uma torre de aço frio
como agulha de seringa
como jaula de correntes - as elétricas
de seu amor debatendo (-se)

pela janela do décimo andar
engolia placas
finas afiadas e compridas

então viveu
um peito nostálgico de guerras
estreitar-se como
uma antena de informações
aéreas

e nomes como os seus
e outros nomes
cortavam pulmões
sem culinária

naquela tarde
preferiu espadas
de modo que era tarde
e como sempre
o metal indiferente
quando penetra a carne

uma serpente chora mordendo a seiva rija da inocência

Em algum momento de 2019

 

 ?



o que faz
com que mansas codornas se formem
e desmanchem
nas veias que faz corroerem as veias
e também profundos diabos?

gritar
o que faz
fugaz, golpes potros
loucos
nas paredes sentidos
coices
do cérebro arqueado
de tesão?

o que faz
reais
as distâncias curvarem?
finais
os limites treparem
consigo?

o que mastiga?

25/09/19

urgentes

algum momento de 2019


é urgente que deixemos as forças se expressarem, é urgente
que finalmente deixemos as entidades dançarem
é urgente o gesto que for
que seja percebido por nós o mais sutil dos movimentos
e que essas intenções possam irradiar para a fonte de nossos desejos,
provocando-nos ao abismo de nossos castelos


as coisas precisam falar mais alto do que o homem hoje
as coisas são urgentes, e precisam que suas vozes sejam ouvidas
sem o filtro dos nomes que damos à elas


as palavras de ordem já conhecemos
as palavra de caos, estamos descobrindo
chegou uma:
escuta

desejos de propósito

 25/09/2019

 

inventa-se uma necessidade de fazer nascer flores aberrantes. as pétalas devem ser bastante. uma coisa que basta. para não dizerem que somos sérios ou aventureiras demais. estamos apenas processando. Algo que Pode Vir a Existir.

então são pétalas estendidas de caules, mas na realidade tudo inventa na flor uma outra flora, mas na realidade são raízes que se espalham por todas as direções e, portanto, não são raízes. é assim que queremos, sempre. parir uma besta. ela acontece dessa maneira: as partes do corpo se intercambiam, numa desorganização de natureza nervosa e rigorosa, como pede a física. nada do que não seja da mais alta cientificidade, aquela para qual os humanos direcionam todos os seus falos(as).
é por esse motivo. uma tendência social. é por essa hazão que esse monstro há de nascer. e vai Morrer quantas vezes for necessário para que se torne inegável, comum, kosmopolita. pois hoje, ao meio dia, as galinhas já mordem o metal que as acolhe, as balas de goma banham quimicamente as imaginações já sem nenhuma consideração, e todos os esgotos do mundo, uni-vos!

o cotidiano parece ter encontrado seu primeiro oponente. em todas as ruas essas flores explodem e, extraindo a virtualidade do solo, vão crescer assim. explosão consistente. para onde você está olhando? não queira fugir, queira.

você vai saber quando for tocade por essa delicadeza gritante. mas podemos te dar a dica: a composição dos tecidos é uma fábrica de moléculas digitais e concretas, um máquina quase inorgânica. entende? é simples. é aquilo que se está facilmente descrito pelos sentidos, pela aparência mais banal. veja: à sua frente o impossível tornado possível. muito(s) mais absurdo(s).

o propósito? sim, está uma proposta. está uma tentativa de um outro, de um cangaço pós-humano, um devir pirata cruzando esse mar de ondas cancerígenas, em (a)naus rizomáticas. tudo pela ética. pela morte pacífica da paz gLobal. porque não há mais combustível para queimar os corpos, porque não aguenta-se mais o sacrifício do devir, porque a bênção do Sujeito (não tem nada de sujo) não encontra mais os recursos necessários para a instalação de nossos cárceres cerebrais. encontrou-se a fragmentação máxima, o mundo está, todo, exemplificado. acabou. e por isso a política quer. a política não tem (que). ela quer: parar de se direcionar para os Do Mal. queremos que sair da negação, escapar da ontologia da antítese, inventar uma dialética quadridimensional.

é uma ficção, como sempre tudo foi, onde a Vontade possa nos trans-fazer-trans, onde possamos nos comer como crianças e nos amar como pedras, como o Sol ardendo, como as deusas encarnadas na mendiga que alimenta suas crias invisíveis, seus filhos de rua, sujeiras divinas.

arriscadeiras

 

25/09/2019

 ARRISCADEIRAS

As flores de fogo atrevem-se às trevas. É este seu movimento.
Fogo preto.


Mas a Metrópole cerca.
Ocultas, as flores de fogo se encontram nas sombras que vagam nas costas dos prédios,
pela nuca dos soldados. São nômades
e passam sobre solo movediço.
É incerto.


São elas os corpos, a dança e a música.
Funda-se uma experiência, ela toda, trans.
Compostas inteiramente quase
de fugacidades, as danadas preferem se encontrar na pele estriada da rua,
e pouco descansam.
Seu fim: não tem nome. Seu desejo: espalhar por aí
esta aglomeração sem contornos,
essa quase-presença que, sem dúvida, é de ensandecer.


Cunhadas de Arriscadeiras pelos psicobotânicos,
as flores de fogo estendem seus ramos ardidos.
Se metem nos temidos cantos inúteis do asfalto,
como o meio atrás do muro, a parte ruim da rua, os terrenos abandonados
e toda espécie de lugar livre de uma função, livre de uma falta.
Lá, elas ritualizam o sujo.
Suas chamas consomem a casca encardida dos becos e dançam faíscas de cores malditas.
Nas poças escuros esgotos da alma, além e aquém das marginais do quadro cívico,
lá elas mergulham. Lá, nas profundidades,
nos espaços que foram banidos das visões urbanas pelas jornadas opacas,
como elas gostam de chamar os Mesmos.
Elas mergulham ferozes, abrindo seus dedos sedentos.


Há inquietação nos apartamentos
e mofo nos olhos dos senhores.
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