23/12/21

o sonho do autômato

liberdade é uma questão de escolha.
essa frase é um absurdo e se refere precisamente à realidade.
não se pode ser livre sem que a liberdade esteja possibilitada antes.
você não pode conquistar a liberdade porque a conquista é um modo de agir.
penso que agir implica uma fagulha de não-determinação ou, no mínimo, uma contra-determinação.
ao menos é nessa direção que o sentido da palavra aponta.
então há um paradoxo: ter de conquistar a liberdade é não tê-la.
não ter liberdade é impossibilidade de agir e, portanto, de conquistar.
parece uma rua sem saída.
por outro lado, parece um deserto.


por liberdade entende-se a ausência de impedimentos externos, que tiram o poder
de se fazer o que se quer*
de se pensar o que se quer
de ser o que se quer
enfim de realizar

nesse sentido, liberdade é apenas desejo
mas o desejo de comer dá em liberdade?
matar a fome é libertar-se?

um animal, entendido como um ser de instintos, pode fazer o que deseja
um autômato, entendido como um animal artificial, pode fazer o que deseja seu artífice
contudo estas potências
são liberdades paupérrimas
são potências mínimas

quando pautamos a liberdade humana, não é de potências mínimas que falamos
não é da potência do autômato porque
por mais complexo ou extraordinário que seja seu ato
por mais articulações que movimente
nada que faz escapa
de uma determinação

(a não ser que a falha,
o atrito,
o curto-circuito,
sejam feitos
ou contra-determinações)

a liberdade humana é mais
do que poder matar a fome
mais do que poder comprar iPhone
porque essas potências
são potências do animal
e do autômato

nossa pauta é uma potência maior
que a do ser de instintos
que a do ser autômato
por mais sofisticados seus cálculos
tecnológicas suas atividades
por mais delicadas suas articulações
caprichosas suas vontades
não escapa a uma determinação
um robô pode tudo isso

só é livre o artífice:
o que determina a potência do animal

pensou-se que era deus
pensou-se que era a razão universal
hoje pensamos
que é o capital

Klimt





*Thomas Hobbes, "O Leviatã"

08/12/21

a recife criativa da unesco

 

"Recifenses conferem o título de condenscendente à Unesco."
 
Mas falando sério, eu fico muito incomodado lendo coisas como "Recife se tornou uma cidade criativa". Claro que, mediante uma reflexãozinha bem banal, a gente já ressalva que é "só um título conferido por tal instituição". Mas o que há por trás dessa nomeação? É um ato de linguagem, é um ato que engendra uma concepção de mundo. Uma concepção globalista, que toma o "Mundo" como ponto de partida. E aí já vem a imagem da esfera azul e verde. O "olho que tudo vê" dos satélites, a tecnosfera enquanto uma espécie de entidade transcendental, capaz de conferir e retirar essências das coisas do mundo. Enfim, um pacto social global que tenta regular o jogo entre imperialismos, e essas instituições internacionais com o papel de juízes universais. Porque é a UNESCO que valora Recife, e não Recife que valora a UNESCO? Não desprezo os efeitos benéficos desse ato de linguagem, na medida em que pode atrair recursos materiais pras comunidades locais. Mas é ingênuo relevar o fato de que a Recife-da-UNESCO é vinculada a uma perspectiva burguesa e mercadológica. De que esses recursos chegarão destinados à essa Recife - Cidade Criativa, a mais nova mercadoria capaz de gerar valor para esse capital cada vez mais incorporado à tecnosfera. E, bem, que isso aumente a renda de algumas pessoas, que pequenas empresas de turismo se beneficiem disso, que oportunidades nasçam para empreendedores praticarem o "cálculo racional", "serem racionais", e, se abstendo dos afetos locais e suas valorações próprias, vislumbrar uma "criativa" forma-mercadoria de sua própria terra, de sua própria história, de sua própria verdade. Vejam aí o PIB aumentando, a glória econômica coroando a UNESCO como Leviatã, autômato hiper-complexo, invenção científica, que levará a humanidade para seu futuro prometido, de muito consumo, novas moedas. E assim, da singela vontade de aumentar sua qualidade de vida e participar desse futuro, esses novos empreendedores sem saber se transformam na lubrificação da máquina global, ou, quiçá, nas novas linhas do código do grande software. O que é fácil de entender, no entanto, é que na sombra dos crescimentos econômicos há uma edificação de novos abismos entre as pessoas, entre as espécies, entre classes, etc. E a cidade de Recife, que sempre foi "uma cidade criativa", para a qual a palavra "criativa" é quase uma diminuição, veste seu uniforme de competidora global, ganha sua insígnia e avança nas raias do progresso.

07/12/21

eu, pequeno burguês

 Reedição de um poema de 2018


Fumadora de ópio, Fernand Cormon
 

 

a questão toda da sua vida toda ser apenas um universo infinito de demolições
ou ser uma raspa de tijolo quente como a baba de um sol convulsionando
na sala de estar

nascemos pra trair o bom nascimento

então a única maneira de fazer do jeito certo é se lançar pra fora cada vez mais pra fora e estabelecer contato com os dentes dos ratos e lembrar de todo o horror e
se culpar e queimar junto com a culpa de tudo
até não existir mais como pensar em voltar a sentir saudades da infância

com toda essa discussão silenciosa, a micro política a macro política...
qual é a ponte entre as duas ?
cadê a possibilidade de ação ?

o outro é sempre o pior, o fascista, o reaça, o ignorante, o bolsonaro, o "aquele", o "eu" que represento, minha identidade top
ah mas que droga. deveria fazer algo com a minha vida já que
teoricamente tenho todas as armas teóricas na mão.. o chumbo logo apodrece,
logo vai espalhar suas toxinas opressivas no ar ao meu redor. é preciso agir.
vamos logo às pesquisas, fazer trabalho científico, produzir conhecimento
vamos logo às bases, conversar ouvir entender mudar de hábitos
vamos, rápido, pras barricadas trincheiras piquetes explodir bancos
vamos eleger presidentes estudados e representativos de minorias
vamos seu inútil
mas
afinal,
se eu não tenho nem vontade de
parar de comer pacotes inteiros de bis depois do almoço
dormir mais cedo, dormir melhor, dormir de fato
cuidar de um corpo próximo como o "meu" próprio
realizar metade dos projetos que minha mente produz incessantemente
produzindo ideias, planos, planos perfeitos
se às vezes não tenho nem vontade de querer
parar de sofrer
nem dar a cara a bater
implacavelmente rendido à condição factual de ser uma mediocridade definitiva
como posso, ainda, me relacionar como humano?
é possível chegar na conclusão mais nefasta sobre mim mesmo
é possível, é fácil, é
normal até
o mundo parece uma mãe cujo rosto envergonhado vai pairar sobre minha pele
até o fogo da próxima morte


e então acordarei novamente, repetido, suficientemente esquecido,
e vou pegar o busão,
com uma poça a mais no peito

02/12/21

simulacras

Reedição de um poema de 2019.

  É crescente a flora infernal que esgueira seu tortuoso apetite
nas sombras retidas atrás.
Atrás das placas
polidas típicas
pálidas máquinas cívicas.
Atrás das peças.
Por entre as soldas
que em continência
não podem as ver.
São elas as ervas
danadas. Diabas.
Racham paredes,
bebem concreto,
pixam os corpos e
transam o lixo.
Enfim elas gestam
com vulvas nas testas
os templos profanos
e conjuram o fim
das finalidades.

 

Poppies' (ポピー),1925, Takashima Yajuro