17/03/20

“O Farol” e o Inferno da Masculinidade

 17/03/2020

No cinema estamos vivendo uma onda de lançamentos profundamente anti-sistêmicos, anti-hegemônicos e minoritários. Mais recentemente Bacurau, Coringa e Parasita se apresentam junto a “Roma” e “A Criada”, de 2018. O Farol, dirigido Robert Eggars, também entra na lista, mas de uma maneira tão esquisita que facilmente poderia ficar sem reconhecimento, ofuscado. Como um filme com apenas dois homens brancos estadunidenses trabalhando num farol poderia ganhar estes adjetivos? É porque se trata de uma apresentação afiada dos limites mais críticos de uma masculinidade hegemônica, que insistentemente reencarna como herói do ocidente. É o escancaramento da toxicidade e da podridão de um modo de ser homem, realizado numa forma tão pungente, tão azeda, que fica impossível a indiferença, mostrando que ainda tem relevância política um filme dedicado ao formal e ao jeito de expressar.

Antes de começar, um fato pessoal interessante. Levou algum tempo para eu perceber — o que, descobri em conversas, pra alguns era claro — que se tratava também de uma narrativa mitológica. O filme apresenta os mitos de Prometeu e Proteu com fidelidade. Mas mesmo sem ter percebido isso, já fui atravessado de muitas maneiras, sentindo ter assistido a um filme de grande potência e possibilidades de reflexão. Tenho certeza que pela internet xs leitorxs encontrarão resenhas que destrinchem, com ferramentas teóricas, esse aspecto mitológico como forças internas que guiam a forma, o texto, etc. Mas essa resenha está escrita num outro sentido. Há aqui uma intenção de defender uma relação experiencial do filme, que é por mim entendido enquanto uma expressão coextensiva à atualidade concreta. De começo, quero dizer como foi a estética do filme para este espectador em particular, como ela agiu sobre mim.

A luz é um ruído

Desde o início, o filme nos intriga com seu quadro em proporção quase de 1:1, o que, somado ao P/B, logo nos lembra da primeira era da fotografia. Então, de cara, já estamos atraídos por esse aspecto fotográfico — do registro da luz –, assim como pelo sofisticado contraste entre claro e escuro, o que estabelece uma atmosfera barroca que perdura ao longo de todo o filme. Mas observando-se os enquadramentos, penso que a referência à fotografia primitiva, com sua baixa definição e alto contraste, acaba delegando à iluminação um papel ativo, ao mesmo tempo que questiona o sentido da visão.

Como essa iluminação excêntrica se relaciona com o pensamento implicado pelo filme? Apesar da luz e do visual influírem muito na expressividade, o que nos provoca a colocá-los no mínimo como análogos do conteúdo, o filme não é destes que se propõe a tornar visível algo que está oculto, nem tampouco se trata de um processo de iluminação a respeito de algum tema, onde a luz funcionaria como elemento benéfico. Excetuando-se algumas informações — duvidosas — surgidas no meio, o que se sabe no começo é o mesmo do que se sabe no final. Me pergunto se há algum sentimento de resposta ou insight com a conclusão do filme… Uma grande resolução do sofrimento? Não apostaria nisso.
A iluminação não esclarece nada; unida à sonoplastia ruidosa de fricção, fica tingida de um tom conflitante. A iluminação é ruidosa.
Pensemos ainda o papel da luz, agora num plano mais simbólico. É o elemento da verdade? Da justiça? Da paz? Mas o filme começa e termina duvidoso, desequilibrado e violento. Não há um progresso linear. Da mesma forma, a luz — a verdade, a justiça, a paz -, é descontínua e radicalmente variante ao longo das cenas. Permanece insistentemente dificultada pela materialidade bruta e áspera da costa marítima e dos corpos sujos daqueles dois homens. E ainda assim continuamos atraídos pela iluminação. A luz é dominante e irracional. Por esse motivo, as arestas, as dobras, os traços pontiagudos e as linhas erráticas, ganham destaque; perfuram a paz e a passividade de um olhar preguiçoso. Pensemos barroco?

Há, entretanto, momentos em que a luz atinge seus extremos totais, quase pura luz ou pura sombra, quando não se vê nada. Algumas cenas internas são quase totalmente negras; há também o desfecho obsessivo de Winslow tentando agarrar o fogo, onde a luz queima os frames em brancura. Mas estes exemplos, por estarem seguidos sempre de uma nova variação violenta da luz, contribuem ainda mais para uma sensação geral de instabilidade, de contraste. Ora, se pensarmos a luz como símbolo da sabedoria, da verdade, ou da justiça, a sensação de extrema instabilidade acentua-se ainda mais, na dúvida. Não se tem certeza alguma sobre o passado dos dois homens, não obstante haja ênfase em suas falas de recordação e revelação. Apesar de suas falas terem ótima articulação e uma oralidade clara, não se sabe qual deles fala a verdade. E qual está mais louco? Qual deles é mais violento? Como “bons homens”, ambos realizam ações objetivando demonstrar coerência e sanar todas estas dúvidas. Mas eles não conseguem. Efetivamente, eles não transmitem nenhuma confiança nem segurança — nem a nós nem entre si! Apesar das enérgicas aberturas e escancaramentos de si que eles realizam, não se sabe nada de fato. A pretensa luz masculina fraqueja. Como no aspecto formal, há muito movimento e pouca conclusão. Winslow de fato cuspiu seus feijões. Só que o tal gesto é mais feio do que revelador.

Não se sabe nem ao menos qual é a beleza ou mesmo a feiúra daquela “maldita pedra”. A escolha do P/B impede uma identificação. É tudo sem caráter. Não há o caminho liso e agradável das cores, o que nos afetaria em memórias pessoais ou coletivas de costas marítimas. Não há nenhuma familiaridade, na mesma medida em que nada é decididamente fantástico ou inverossímil. Nada além do todo é surpreendente. Revela-se, expõe-se todos os lugares daquele ambiente minuciosamente explorado ao longo filme de locação única, e não há nada de “novo”. Mas é tudo diferente. Embora seja claro de qual lugar se trata, não haja uma ocultação sobre esse paradeiro e, de certa forma, a escolha seja “entediante”, essas positividades são corroídas pelo P/B, pelos enquadramentos e, novamente, pelo virtuoso claro-escuro do filme. O céu, o interior das construções, o chão, as rochas e o mar, enfim, tudo é impessoal e estranho. Essa atmosfera é por si só tão perturbadora que as visões delirantes de Winslow nos parecem coextensivas à natureza do lugar. Mas, novamente, somos obrigados a admitir contrariadxs que é “apenas a realidade deste trabalhador psiquicamente adoecido”. E como são angustiantes essas ambiguidades, esse irresoluto movimento. Quando se considera seu efeito do ponto de vista da paisagem, do meio, a incerteza ganha, finalmente, estatuto ontológico.

Então surge a questão: se claramente não se trata de um triunfo da claridade nem da sombra, e impede-se de sentir um progresso linear a uma iluminação ou escuridão total, qual tipo de movimento óptico ou epistemológico o filme realiza? Por não se tratar de uma expansão pacífica da luz, em que cada cena mais coisas se tornam claras, e ao mesmo tempo sermos atingidos pela força, justamente, dos contrastes violentamente variantes entre luz e sombra -entre fala(o) e fato -, é que se realiza no filme um gesto que contesta o estatuto transcendental da luz. Não estamos mais num mundo onde pré-existe uma luz da criação, um fundamento a priori ou Ideia, que abrigasse em si a consciência numa pureza a ser recuperada por meio do enfrentamento da sombra, elemento maligno, a posteriori. Em O Farol é impossível cair em qualquer dualismo estático. Há dialética e há fluxo. A luz realmente é um elemento importante da vida, mas compete com outros elementos numa grande ondulatória ou vibração. Um firmamento de água e pedra. Viver a costa marítima com a intensidade desta proposta, faz a luz descer do paraíso para ser concebida na imanência, ondulando junto a toda materialidade. Afinal, só se sabe deste único “desde sempre”: conflito enérgico entre luz e matéria. Panta rei. É esta a sabedoria que aos poucos vamos recuperando ao longo do filme, numa dura lição. Heráclito sonhando com Poseidon.

Em suma, existe a tentativa de revelar um processo. Por meio da exposição, do escancaramento de conflitos humanos e não-humanos, aparece, onde não havia, um movimento insuspeito. Na paisagem do farol, a fotografia de época revela, entre a torre simbólica e a rocha assignificante, dois homens; um trabalhando em condições insalubres e o outro apoderado, em condições também insalubres. Revela-se também uma gaivota. É um país conhecido (Estados Unidos), num lugar conhecido (Nova Inglaterra). Revela-se uma velha história mítica de marinheiros, dessas concebidas numa vida alcoólica. Nada de novo. Mas a exposição não termina, nem vencem a luz ou a sombra, e onde se pensa haver, numa imagem, a sólida ordem natural das coisas, encontra-se uma mutação. Possivelmente monstruosa. E parece tender ao que simplesmente é desconhecido.

Poderia dizer então que se trata, antes da revelação de uma verdade, da destituição de uma ilusão. O real revela-se como devir. A eficácia concreta do filme desestabiliza, de modo físico, corporal, a ordem do real. Não por meio de uma irrealidade construída na imaginação pura — o que apenas reforçaria o real em contraposição — mas sim por meio de uma revelação do conflito que relaciona ambos, real e irreal. Conflito que nunca os conseguiu separar.

Máquina de ondas

A matéria e a luz enquanto conflito. Ou, talvez, o mar corroendo o farol. Afinal, encontra-se um princípio justamente no conflito e na corrosão. Em algum grau, há instabilidade em tudo, porque tudo está ondulando, friccionando, decaindo, pesando nos ombros, doendo no corpo e na alma, que lutam contra o perecimento. Tudo que é sólido se dissolve no Mar. Esse princípio natural provoca a angústia existencial e física dos dois faroleiros, que são a apresentação datada de uma antiga pretensão masculina. A cenografia e a atuação, como duplos um do outro, erguem entidades eretas (o farol e seus homens), mergulhados no mesmo devir masculino. O filme traz o farol como um símbolo fálico representando a tentativa do homem de vencer e dominar o mar, levando sua ordem a novas terras. Ou, em outras palavras, a tentativa masculina de controlar, pela virilidade ou pela astúcia, o
aspecto mutante da natureza. E trazer essa tentativa é trazer a consequente crise desse projeto.

Sim, é possível existir assim, lutando contra o destino. Como o ocidente nos mostra, é possível até mesmo erigir uma subjetividade consistente (ainda que estando sempre iludida e nunca satisfeita, ainda que jamais realizando o próprio objetivo hercúleo em que se sustenta). Mas essa tentativa antiga, continuada pelos faroleiros, os leva a uma deterioração torturante, infernal, à medida em que o mar avança sobre a costa. À medida em que o próprio espírito econômico do ocidente os força a explorar-se e competir, o que mostra uma corrosão vinda também desde dentro; à medida, enfim, que a água salgada invade a lógica linear dos pensamentos, vinda do passado, do futuro e do catastrófico agora. O que é inevitável. Entretanto, ainda que, na verdade, a deterioração seja natural, o gesto de fundar uma natureza humana que se opõe virilmente à natureza (do mundo, da mulher), gesto que sedimentou ao longo da História várias camadas de subjetividade masculina, faz com que qualquer emergência dessa profundeza mutante e ocultada seja sentida como um caos medonho.

Para fazer passar essa condição crítica da masculinidade hegemônica pelo medo, esta fica posicionada onde a natureza mutável mostra justamente sua face mais intolerante. Em geral, aceita-se facilmente esta verdade sobre a vida ser fluxo, ondulatória, vibração. Mas a vida, enquanto subjetividade não-humana, expressa esta verdade em diferentes intensidades, a depender de espaços e tempos singulares. A fria costa marítima da Nova Inglaterra apresenta-se no filme como um espaço-tempo de ondas das mais violentas. E não somente pelas ondas do mar! As mais sutis são igualmente perigosas (o gotejar na cama, a inesgotável preocupação mental, etc). A intenção é trazê-las, todas elas, à tona, num turbilhão cinematográfico. O choque e a tensão, no sutil e no grosseiro, são trazidos ao primeiro plano. O filme convoca desde a ondulatória pesada — do mar e das rochas e das máquinas — passa pelas ondas sonoras — produzidas pelas fricções desses materiais — e vai minorando, minorando, até chegar às vibrações elétricas da psique e, por fim, da própria luz. Contempla-se todos os níveis de frequência, balanceando em equivalência todos esses reinos in-trincados, o que faz emergir um movimento perpétuo e nauseante. Mas se trata de algo além de um simples aparelho de tradução de ondas: o filme não é só belo e formalmente perspicaz. Há um posicionamento.

O inferno da masculinidade

A estética do filme exprime essa natureza tensa e mutante, que emana diretamente das profundezas, para atingir incisivamente a psiquê dos homens (e a nossa, na medida em que ocorre identificação). Profundezas que, no entanto, estão em qualquer lugar: são comuns, coextensivas ao que há de natural no mundo. Só que os homens fingem não senti-la; fingem suportá-la e vencê-la com indiferença, performando uma postura de fechamento e virilidade. Consequentemente, o todo do filme age como um inferno salgado, a corroer lentamente essas subjetividades da indiferença. Processo que se expressa mais radicalmente com Winslow, pois Wake, experiente, já está há muito tempo submerso em banho-maria.

Falemos então dos personagens e da identidade masculina que apresentam. Os dois homens, já deteriorados desde o início do filme, vivendo sempre o último dia de suas vidas, guardam e preservam em seus interiores o único bem que aparentemente a vida não pode tirar: sua macheza. Com seus olhares taciturnos, as sobrancelhas sempre franzidas, os pelos faciais e o jeito de desprezo, eles estão lá, resistindo em seus modos de ser. Trago após trago preserva-se o gosto do tabaco, que é como uma essência masculina a ser protegida da fúria e da confusão que os acossa desde o mundo natural. Condicionados, eles não protegem essa essência por capricho, mas porque não há outra possibilidade. Pois toda a materialidade do trabalho, da repetição e da dificuldade vai dominando tudo. Só resta esse gosto de ser homem para criar algum sentido imaterial que transcenda tudo isso.
Toda a socialização, somada à experiência no trabalho, afunila suas possibilidades de vida. É só aquilo que podem homens ser, como arautos inadvertidos da masculinidade. Mas eles já estão obsoletos. Como explica o sociólogo Michael Kimmel, num artigo intitulado “A Produção Simultânea de Masculinidades Hegemônicas e Subalternas”, a masculinidade é uma fábrica de subjetividades que constantemente atualiza seus produtos com novos modelos. Estes, ao aparecerem no mundo, fazem com que os antigos tornem-se subalternos.

Para o desgosto do velho Wake, os seus heróis marinheiros morreram, levando consigo toda uma poética que ele tenta obstinadamente ressuscitar. No lugar deles vieram homens chatos como Winslow. O lírico faroleiro viveu esta transição de gerações, mas parece incapaz de aceitar o fato de que ele e seu irritante pupilo são iguais na condição de refugos. Um muito molhado e o outro muito seco, ambos são resíduos de uma envelhecida narrativa sobre masculinidade, a apodrecer no tempo. Já estão imersos num contexto histórico em que, como explica Kimmel, já emergem os novos Self-Made Man, e eles são apenas dois trabalhadores braçais, presos numa máquina e rejeitados pelo mundo que os criou.

Antes de detalhar a singularidade de cada personagem, cabe fazer uma ilustração da relação entre eles e deles com o ambiente — uma possível cartografia desse inferno.

Como se espera, ambos compartilham do ideal de homem. Mas enquanto o novato ainda está cético e seco, o velho, que está a décadas absorvendo e se alimentando destas condições brutais, já está infestado de mitos. Crédulo, mostra-se já corrompido por um imaginário aquático, apresentando uma subjetividade invadida, permeada pelo fora. Nele, apresenta-se um híbrido, localizado na intersecção entre o sujeito-homem Wake, a tecnologia mecânica do farol, e a bruta natureza da costa. Assim, com Winslow, Wake, o farol e a costa, apresenta-se um espectro de subjetividades que tem o humano-homem em um extremo e a natureza não-humana no outro. Como termos intermediários, apresenta-se Wake — uma esponja-humana-do-mar — e o próprio farol, não-humano, mas fálico. A ação do filme, em termos gerais, apresenta uma linha de desterritorialização que vai ser percorrida por Winslow, o homem-homem que entra em devir.

Winslow vai perder-se de seu “si mesmo”. No instante em que, com a sensibilidade inexplorada de suas nádegas, encontra e toca no scrimshaw de sereia (tradicional artesanato de marinheiros que consiste num entalhe em osso), dá-se início a um processo de encantamento que tratará de deteriorar a estrutura da sua psique, tornando-a totalmente permeável ao fora.
A imagem do homem honesto e trabalhador, apto a mostrar sua força, que não demonstra surpresa com nada — tudo é real ou mentira. Possui as qualidades da diligência e da objetividade. Um ser à imagem de Deus, que possui o poder de decidir sobre a própria vida. Este é o papel que Winslow sempre tentou representar. E talvez essa estrutura até pudesse ser mantida por toda sua vida. Mas algo na singularidade mítica e líquida do novo posto de trabalho encontra uma brecha para se infiltrar e corroer.

A narrativa tem seus pontos chaves, apresentando grandes e até canônicos desafios à masculinidade, onde o sujeito se vê atravessado por um fora ou até associado à feminilidade. Ele será colocado em situações em que sente vergonha, como quando é obrigado a limpar o próprio sêmen — o que seria, como ele mesmo diz, o trabalho para uma “esposa/escravo”. Outras em que é obrigado a sentir e até expressar sua própria fraqueza para outro, sendo observado pelo patriarcal Wake. Como uma gaivota pôde exercer tanta força sobre seu corpo e seu autocontrole? Por que ele está tão afetado pela magia do artefato e do falatório supersticioso de Wake? Onde estão as mulheres sobre quem naturalmente é designado a exercer seu poder? São desafios reais para machos que se querem assim. Mas, talvez numa situação normal, todas eles pudessem ser contornados sem maiores abalos à sua sanidade e hombridade. Como qualquer homem faria. Afinal, ele é só mais um trabalhador explorado desse mundo. E não há nenhuma tentativa de descrevê-lo como alguém especial, predisposto à fraquejar. Seu interior não é interessante. Até mesmo o seu crime, de ter deixado o ex-patrão morrer e tomado sua identidade, até mesmo isso é uma expressão muito mais social do que pessoal, pois fez isso para sobreviver. Muitos outros fariam o mesmo. Contradições morais, inerentes ao capitalismo. Então, o que há de diferente no farol que o desterritorializa? É aí que entra Wake.

Thomas Wake é um velho emocionado. À essa altura de sua vida, aparece como uma pessoa espirituosa, afeita a cerimônias — etílicas — e ostensivamente lírica; sua oratória refinada parece indicar uma valorização da erudição literária; parece estar de alguma forma ligado às “belas artes”. Isso contrasta e fricciona com o caráter rígido e frio do seu ajudante. Mas apesar de ser individualmente muito diferente de Winslow, socialmente ele representa quase o mesmo, pois compartilha do ideal do ser homem no mundo (que já podemos resumir como o gosto pela afirmação de si por meio da dominação do outro) (e pelo tabaco). São apenas tipos distintos de masculinidade, muito próximas às descritas por Michael Kimmel no referido artigo. Enquanto Winslow é o operário heroico, Wake parece representar o patriarca afetuoso. Entende-se que, partilhando do mesmo espaço, já estariam predispostos a competir. Agora, como um é, tacitamente, patrão do outro, isso se intensifica.

O jeito como Wake expressa autoritarismo, com fraseados pomposos e poéticos, dá indícios de quais são seus meios de conseguir prazer — a Winslow só resta a masturbação. O novato é forçado a fazer o papel de sua fantasmagórica “esposa”, no sentido de uma alteridade que se pode explorar, encachaçar e agarrar (“infelizmente” esbarra-se no corpo de um homem, aversão que impede o beijo). Essa dinâmica ilustra muito bem o que é uma relação de exploração entre patrão e operário sendo intensificada pelo machismo — mesmo no caso homem x homem.

Acontece que, mesmo no topo do seu poder, Wake continua sendo apenas um faroleiro. Cena após cena, vai demonstrando ser um poço de frustração. Ele sabe: não existe mais, em parte alguma, o aspecto aventuresco da navegação, que agora é estritamente comercial. Também não há mais em seu mundo nenhuma mulher, para que pudesse explorar ou “conquistar”. Para piorar, seus ajudantes não satisfazem seu autoritarismo. Nem aprovam sua culinária! Todas essas pedras, ou melhor, poças, ele carrega no peito. Essas adversidades emocionais contribuem para uma frustração enorme, que o encaminha a mentir sobre seu passado. Mas, diferentemente, a sua excentricidade é resultado da adversidade concreta que é estar a décadas encarregado de um farol no meio do nada. O ambiente, extrapolando a condição de mera projeção do sujeito ou pura percepção cognitiva, emerge como agente. A materialidade não-humana — do farol, da costa e principalmente do mar — invade, a tempos, sua personalidade. Ele demonstra já estar “louco”, no sentido de que se distanciou da estrutura psíquica normatizada para um homem: já se distanciou do humano ocidental e se aproximou do anômalo. Vejamos por quê.

É instigante sua prece de proteção. Ela evoca o oceano de uma forma solícita, valorizada, parecendo demonstrar, ao mesmo tempo, medo e devoção; como sabendo profundamente que se trata de um titã da natureza. Nos momentos mais intensos, Wake parece uma espécie de bruxo ou clérigo do mar, invocando os elementos do oceano e da costa — os peixes, os corais, o sal — como aliados em suas maldições. Sua velha lábia humana persiste, na habilidade em que tece as falas expressivas desses feitiços. Mas surpreende a maneira como Wake tem uma sabedoria assustadora e uma percepção absurda a respeito de tudo que acontece naquele lugar. Conhece a relação mágica entre as gaivotas, o vento e o mar, como se tivesse aprendido destes e não de outro homem. Wake também sente todos os movimentos ao redor, como se sua sensibilidade fosse coextensiva ao meio. Encachaçado permanentemente, esparrama sua presença líquida e podre ao redor. E por vezes subitamente se endurece como um tridente feito de corais cortantes. Indícios de um hibridismo, um devir farol, devir costa, devir mar. Ainda que uma parte sua persista, a apontar para o passado — sua normalidade de humano “homem” — outra parte sua aponta para algum futuro incerto no mar salgado que o irá abrigar e dissolver.

Como clérigo do mar, patrão e homem, Wake catalisa um processo de dissolução das estruturas psíquicas de Winslow. O sujeito ereto terminará o filme vacilante. Rapidamente vencido pelo álcool, o novato fica aberto, vulnerável, em um meio que já é propício à devastação. Além dos efeitos próprios da substância, passa a ser atingido pela dominação patriarcal do seu patrão e, consequentemente, a ser influenciado por todos os outros elementos pelos quais este é atravessado. Vendo-se nessa situação devastadora, nesse inferno, Winslow precisa encontrar algum ponto de apoio psíquico, algo que proteja sua identidade desse mal externo; precisa vencer as forças desterritorializantes com uma força equivalente. Então, como quem agarra uma pedra para não ser levado, passa a apresentar um comportamento obsessivo. E o objeto de sua obsessão é, novamente, o posto do seu patrão, cuja conquista representaria a manutenção de sua masculinidade, a permanência na via “normal”. Ainda que, para nós expectadores, Winslow já apresente claramente sua loucura, é como se ele, obcecado por vencer Wake na competição de machos, não o percebesse. É por isso que começamos a enxergar em Winslow uma desconexão profunda. O resultado é um sujeito “esburacado”, cindido, que se torna intensamente violento, na medida em que persegue um objetivo à custa de qualquer moral, e ao mesmo tempo percebe que toda objetividade está corroendo.

Esta relação funciona como um retrato do trabalhador explorado duplamente — pelo patrão e pelo próprio ideal de homem. Mas há um terceiro elemento, singular, que produz
uma diferença em relação ao retrato puramente social da época, e que também contribui para a liquefação de Winslow. O não-humano, as forças da natureza, singularizadas pela costa marítima, também entram nesse conflito. Não apenas como adversárias de Winslow, mas de toda uma subjetividade humana fundada no homem moderno.

Um/a adversário/a não humano/a

Saturados/as que estamos desse universo masculino, como é possível atribuir um sentido anti-hegemônico a’O Farol? Não se trata de mais um filme excessivamente masculino? De fato, é impossível falar de representatividade feminina no filme, e isto é uma crítica a ser levantada. Mas é de uma maneira feliz que não aparece uma grande figura opositora — algo ou alguém que representasse uma subjetividade feminina delegada a contrariar toda uma hegemonia. Tratando-se de um filme dirigido por um homem, isso geralmente acarreta uma nova idealização do feminino. E ainda um endossamento da ordem binária dos gêneros. A estratégia alternativa, adotada pela direção para dissolver essa masculinidade, é a introdução de um elemento estranho a esse binarismo. É justamente o “fora”, surgindo enquanto entidade impessoal, que vem balancear o excesso de masculinidade, na posição de adversário. Com a introdução desse fora, “masculino” não preenche mais a metade das possibilidades de ser, tornando-se algo muito mais contingente, específico.

O “fora”, agente não humano, é o elemento mais “estranho” e talvez mais interessante do filme (até porque está objetivamente conectado aos dois homens). A luminosidade unida à sonoplastia, numa orquestração poética e tecnicamente sofisticada, faz falar uma voz-ruído: o rumor do ambiente enquanto expressão ativa. O que o olhar da gaivota faz passar? Não tem significado, mas certamente faz passar algo que paralisa Winslow. Não tem significado, também, a expressividade de seus ganidos agudos ecoando pelo ar, refletidos pelas paredes do farol. Assim como as pedras que amortecem o mar, ganhando contornos tão sinuosos e cortantes que sua simples visão é agressiva a uma percepção cartesiana, ordenadora. Mais além, um mar tão severo quanto um deus, mas também tão mutável, que vai da tempestade à calmaria, quando acolhe sereias debaixo do luar. É na condição de forças que esses elementos nos atingem. Sua falta de significado é apenas a prova de sua exterioridade, algo que nossa leitura do mundo sempre não lê.

Sim, nós lemos algo. A gaivota, as pedras, o mar, têm sua carga simbólica, um conjunto semântico que foi historicamente construído. Mas, concomitante à construção desses significados, há uma relação, também histórica, mas da qual o humano é apenas uma das partes. Essa relação inter-específica é algo que o símbolo, por vezes, esconde. O filme utiliza uma delicadeza em captar a singularidade dos elementos que carregam esses símbolos — sua irregularidade, sua textura e, principalmente, a diferença irredutível entre eles. Dessa maneira, propiciam que o fundo assignificante emerja, sem que o simbólico se perca. Para provocar essa emergência, foi necessária uma estética particular, cuja fotografia já foi discutida. Mas o que dá a esse assignificante sua participação ativa, adversária aos sujeitos homens, é principalmente o som.

Gerado em captações de notável precisão, o som desses elementos naturais funde-se ao som rítmico das máquinas no farol, removendo-as, também, de um invólucro semiótico. Microfonadas com delicadeza, as máquinas em funcionamento emanam um som que as libertam de serem lidas apenas como instrumentos, realizações técnicas, diagramas físicos, enfim, puras extensões do humano. Fossem assim, funcionariam sempre exatamente como as projetamos. Aqui elas se apresentam como pedaços de matéria: inescapavelmente irregular — mesmo que num nível imperceptível. Esse reduto do irregular, que é o traço de uma dimensão incontrolável pela mente, emerge do encontro das peças na forma sonora da fricção: sinal do desgaste. O desgaste é o eco, nos sólidos, das profundezas vibracionais; expressão da mutabilidade natural que existe até no que aparenta perenidade. Sobrepõe-se essa sonoridade maquinal com a do ambiente da costa, para que ganhe corpo uma grande massa sonora, coextensiva e múltipla, que dissolve as fronteiras entre o artificial e o natural.

Nessa situação, poderíamos pensar que a adição de uma trilha sonora provocaria uma desconexão. Por estar inexoravelmente ligada à artificialidade humana e ao significante, ou ela comprometeria o caráter não-humano da sonoplastia, ou funcionaria como uma representação do humano, fundada na perspectiva dos homens, contrapondo-se ao externo. Nada disso. Na verdade, a trilha sonora expressa a voz externa que permeia o próprio “interno” dos homens. Graças ao que há de único na composição de Mark Korven, onde o timbre lidera os longos blocos de acordes dissonantes, há um efeito que pode ser traduzido como uma tensão insolúvel, cuja intensidade cresce e decresce lentamente, lembrando o mar em câmera lenta. A memória acumulada da diferença, do conflito. Novamente, o conflito como elemento de unidade. Mesmo que se associe a música à condição subjetiva dos homens, aqui ela vibra a dificuldade de mantê-la; é sinal da relação com a presença do que lhes escapa, mesmo dentro do próprio corpo, da própria imaginação.
Desse modo, tanto a sonoridade do mar, quanto a das máquinas e da trilha sonora, estão profundamente conectadas. Mais do que isso, dá-se a impressão de serem coextensivas, como um grande Coro, uma multiplicidade sonora ubíqua que está no mar, nas pedras, no aço e na própria carne. Ouvidos mais atentos nos levam a dizer que são vozes tão ativas no filme quanto a dos homens. Unem-se ao visual claro-escuro para tornar presente a natureza em toda sua contradição; não idealizada ou essencializada por uma verdade, mas sim uma natureza singularizada e concretizada pelo espaço físico (que é também psíquico). O filme realiza o trabalho desafiador de trazer essa alteridade para o primeiro plano, tornando-a participante da história. É o imperceptível a desterritorializar os faroleiros.

Diante dessa alteridade, Wake e principalmente Winslow aparecem como uma fundação antiga, à beira de um desmoronamento que selaria uma derrota. Fica exposto um antagonismo entre a subjetividade natural concretizada na matéria e o sujeito humano fundado no homem. A ilustração mais bem acabada desse conflito é própria costa, onde a primeira é representada pelo mar e, a segunda, pelo o farol. Nesta construção fálica, elemento central do filme, temos um emblema luminoso da ordem, da bravura e da racionalidade humana. Um estandarte erguido no meio do caos. E é para ele, para a manutenção desse símbolo, que os homens trabalham, não o contrário. Para o farol, os homens são arautos, mesmo que inadvertidos. A chave para reconhecer essa posição de defensores que os homens desempenham está tanto na sua relação subjetiva com o farol, quanto objetiva.

Para defender esse emblema, há o trabalho material de Winslow, que sofre as consequências mais objetivas do meio. Ele carrega o peso dos recursos, escorrega ridiculamente na lama, enfrenta o calor das máquinas e resiste às intempéries da água que se infiltra. Winslow, em suma, aparece como o homem que luta contra a materialidade a favor do ideal que, como subalterno, não pode conhecer. Ele não tem a chance de ver a sala de luz, onde está a imagem desse ideal, reservada ao patrão Wake. Este, por sua vez, desempenha a função mais litúrgica e mais subjetiva na relação com o farol, de modo a engrandecer sua existência para além da realidade física. Ele impõe ao subalterno que respeite seu cargo miserável, como se fosse uma grande honra. Ele mantêm a ordem espiritual do local, com suas preces e suas cerimônias, sem nunca sujar as mãos (a não ser para cozinhar). Por fim, e o que é mais importante, ele pratica uma adoração sem fim à luz do farol, como quem goza de uma permissão para ver o divino (mecânico). Assim, é como se houvesse uma dinâmica formada por uma divindade, um sacerdote e um iniciado. Mas não há nada de sobrenatural acontecendo.

Por um instante parece insólito o modo como Wake fica hipnotizado ali. No entanto, e o que é mais surpreendente, é possível intuir uma lógica que sustente esse comportamento sem precisarmos convocar instâncias sobrenaturais ou transcendentais. É só observarmos o que a materialidade fotográfica do filme nos revela, na única cena em que aparece de perto a luz do farol. Não há nada de sobrenatural ali. É literalmente um grande compartimento de vidro, que abriga em seu interior uma chama à lenha. Nada também de muito estranho é o fato de que todo o trabalho desempenhado naquele local (no sentido humano e no sentido físico mais amplo), converge, basicamente, na manutenção do funcionamento giratório deste compartimento de vidro. Se trata do ponto de culminação de toda essa energia, que faz girar perfeitamente e de modo tão solene, um material transparente, liso, lapidado por linhas suaves e gentis. O resultado é a (mera?) projeção da luz linear que guia as máquinas humanas no oceano abismal. Sim, é simbólico. Mas a força extraordinária que passa por esses símbolos corresponde ao que é concreto e singular. O filme, permanecendo no limite do que é real, mostra a força da imanência. Uma força que pode transformar relações de dominador-dominado, inclusive invertendo as posições.

Esse conjunto simbólico-físico sob o qual Wake dispensa toda a sua atenção e seu amor, fica localizado no lugar mais confortável do interior do farol, a sala de luz. Esse lugar contrasta violentamente com toda a materialidade do abaixo e do afora, onde tudo expressa instabilidade, permeabilidade e sujeira. De maneira quase oposta, essa diferença extrema de aspecto, de aparência e de substância, expressão da própria matéria, como um gesto do mundo em sua concretude mais externa, é por si só uma força que magnetiza Wake e, por consequência, aquele que ele proíbe de ver; é por si só uma ato mágico, de desafiar o destino, impondo à própria natureza que se apazigue. Na claridade daquela sala iluminada, elimina-se toda alteridade que desafie o sujeito: parece existir ainda um resquício de estabilidade e pureza. Na lisura daquele grande lampião de vidro, o homem finalmente encontra a matéria em seu estado controlado.

Enfim, por mais grandiosa que seja a engenhosidade humana, por mais hercúleo que seja o sujeito-homem, ele jamais está acima do acontecimento. Os navegantes não poderão jamais deixar de negociar com Poseidon sua travessia. O empreendimento de expandir pelos mares e pelos milênios a ordem civilizatória — algo de uma peculiar mística anti-mítica — possui o corpo dos que o realizam, isolando-os do fora, que se torna inanimado. Assim, encantado pela razão, o homem vive aprisionado num mundo de matéria inerte, que não tem alma, exceto a alma de si. Tendo o próprio corpo obstruído e moldado pelo idealismo, o homem vive o uma longa morte, levando, como única relação real, aquela que se define pela exploração e a de devastação do/a outro/a. Tendo almejado uma liberdade fechada, ele é livre apenas para alterar o tempo — marcado — de sua deterioração. Mas a matéria não é inerte, ela é expressiva; a natureza é viva, ativa e se fará escutar. Mais cedo ou mais tarde, os arautos da masculinidade encontrarão o destino comum das coisas, no lugar mais infernal. Desde as profundezas, o deus sem-rosto, o oceano.


_________________________

Que se reconheça a coragem do gesto cinematográfico que deu vida à “O Farol”, filme de Robert Eggars. Por meio da estética, o filme se lança num território inóspito, aparecendo, na conjuntura atual, como uma pedra ônix: sombria e brilhante. Sua presença contrastante, dilacerante de toda realidade estável, atravessa com insolência o território das masculinidades e até do humano moderno, provocando-as, processando-as. É dado a nós o momento da vingança do fora, que vem de tudo que é material, penetrando, fisicamente, nossos idealismos. Assim, nós temos a oportunidade de sentir o efeito insuspeito de um modelo de humanidade. Esse que a reveste de hombridade e a coloca como adversária e legisladora acima de toda alteridade não-humana, ou sub-humana. Nos esgotos do ocidente, revela-se o subproduto doentio desse homem fabricado, que acaba servo de si mesmo, na intensificação da exploração que o capitalismo historicamente produz. Não nos enganemos pela excentricidade do filme, pois ele diz respeito mais sobre o presente do que do passado. Estamos vivendo cada vez mais dentro do frame 1:1, numa crise ontológica sufocante, e a qualquer momento a alteridade romperá nossas janelas, como o mar em sua expressão mais infernal.

14/03/20

percepções do massacre de Suzano

 14/03/2019

PERCEPÇÕES DO MASSACRE DE SUZANO 


a dor criando qual dança diabólica novas formas, níveis e cores de sangue explodindo a cada dia mais nas escolas prisões, sangue intermitente, que resiste, que mata de dentada, mastigando a existência aos poucos, atirando nos pés, nos dedos, nos olhos um de cada vez, porque fosse só a morte não haveria gritos, não haveria dor
mas há.
é que agora as crianças crescem para enfiar a porra do pinto num buraco e finalizar a vida, os adolescentes são máquinas mortíferas automáticas metralhadoras de aniquilar corpos de si e de outros, os adultos deformaram seus corpos modelaram sua encarnação num funil, numa viseira ou num chicote que estrala nas costas do mundo que tentam prostituir matar escravizar, sem nada sentir a não ser o clique do estalo

não sentem

pois nem mesmo os reis gozam da violência que dogmaticamente produzem no mundo. príncipes do castelo de muros são torcidos num apontador, saem em disparada aos seus alvos, seus pontos, porque isso é tudo que existe, e, como abelhas, furam o mundo e se matam protegendo algo que nunca tocaram ou sentiram, nem mesmo seus pais, nem mesmo seus avos.

mas abelhas estão livres da moral.
nós não.
nós estamos acorrentados no tambor de um revolver que ajudamos a criar,
nós vivemos para construir aquilo que nos causa a dor
nós inventamos os direitos humanos para nos torturar ainda mais com nossa própria incapacidade de prática-los

mas não porque somos loucos
ah, não.
nós somos perfeitamente construídos. nós somos a maravilha da natureza, o projeto final, vencedores do concurso, ouro racional, projétil.
projétil ser humano.
professores, profissionais, produtores, poderosos, nós somos a autoridade:
a matéria militar,
a tirania elemental, astro a quem devem obedecer os outros>> nós, os outros.
é!
é ao projétil!
é ao projeto que devemos obedecer, avanti!
maquinistas do trem-bala! avanti!
até que não haja mais nada no universo!
até que atinjamos a velocidade da luz!

luz.
a eletricidade é o nível final dessa bizarra maravilha que é o ser humano. conseguimos mentalmente torcer o silício, produzir a dobra nanoscópica precisa e assim virtualizar a realidade ao nível do elétron
nós nos curvamos ao elétron
hoje todos os cantos, todos os lados, todas as paredes
ou qualquer falta de horizonte/pessoa
que você quiser inscrever na equação da sala de espera;
qualquer fresta, qualquer gesto, sujeira, textura,
qualquer aparente diferença produzida pelo que nos cerca
não está lá.

há apenas a prótese de nossos objetivos corpos esquecidos.

só nos resta contrariar aquilo que, até hoje, fomos.
resta contrariar a nossa própria natureza.
resta acreditar que existe uma maneira de seguir vivendo...
e
é de se perguntar, eu sinto, é de se provocar à pergunta,
questionar aos quatros cantos da sala:
porque nossas crianças estão substituindo a fruta pelo elétron?
o que há de desejável na tela, que é indesejável no resto?
o que faz com que 536 milhões 479 mil e 200 segundos,
ou dezessete anos da experiência vivente de um organismo pulsante e criativo,
culmine todas essas potências num curto prazer, na aniquilação do mundo e de si?


para além das óbvias mágoas, dos absurdos morais que provem de um massacre tão nefasto, da incredulidade, da raiva dolorida, da vontade de destruir isso que destrói,
é nosso dever, enquanto o que restou de vida, sermos éticos e, de uma vez por todas, ouvir o que está sendo expressado através deste episódio,
o que está sendo expressado, inclusive,
através da existência desses dois meninos aberrantes.
o que esse gesto diabólico e ao mesmo tempo tão inescrutável, incompreensível, impossível de empatizar, o que ele expressa?
"tudo isto que esta aí, todas essas vidas, todas essas pessoas, inclusive eu, são falhas. só existem para deixar de existir. não há outra maneira de se viver que não seja reduzir essa falha no mundo. não há outra maneira de se viver."

VERGVOKTRE