31/08/21

na sociedade do controle: o deus micro-chip

 


O silício é a nova onda. Todo mundo está atrás desse hype. O micro-chip como objeto-símbolo da glória. O sucesso. “Trabalhai com o silício e poderás reduzir infinitamente o tempo entre o objetivo e o resultado.” Foi isto que a vida me ensinou. Você consegue imaginar? Imediatamente, querer e conseguir! Isso não seria a experiência de dEUs?

Mas eu não me sinto assim. Meus amigos estão se suicidando e os que não conheço de perto estão sendo assassinados por suicidas. O tempo de fato se reduz, mas não para de ficar menor. Então, essa glória de silício… Pra quem ela funciona? Talvez estejamos redescobrindo que o ser humano foi mesmo uma invenção divina. Cordeirinhos lógicos.

Deus quer e deus faz acontecer. Ele vai descer à Terra, gozar de existência sólida, incorporar-se, sem por isso deixar que as dificuldades da matéria impeçam o livre exercício de sua existência divina. Ele descerá e continuará onipotente. Mas qual será o corpo que assumirá? Nós, o pessoal do círculo de profanos sabotadores, ficamos sabendo que a glória do silício está reservada para um avatar não-humano. O paraíso sobre a Terra está próximo, muito próximo de acontecer. Mas nós não vamos experienciar isto, porque está para além dos sentidos, como já foi repetido tantas vezes.

É possível, no entanto, ter um vislumbre. Vocês já devem ter visto as imagens aéreas da cidade e das zonas rurais. (O satélite tem a visão dos anjos, porque pode ver os movimentos de deus na Terra.) Sim, você está vendo um grande chip. Tudo está medido, toda a superfície terrestre, esquadrinhada. Não há mais um “fora”. Agora falta apenas trabalhar os sólidos que ainda apresentam alguma irregularidade. Aos poucos tudo vai assumindo a forma de uma plano cartesiano bidimensional. A altura? É apenas a possibilidade de se empilharem os planos. Você pensava que a imagem de deus fosse uma coisa mais bela, não é mesmo?

Podemos perceber que tudo é uma questão de asfaltar, de se expandirem as vias, de se multiplicarem – controladamente – os canais por onde passa a energia. Que energia? Ora, são os elétrons, finalmente controlados. Após dois milênios de domesticação da Terra, o impulso elétrico, o sutil, a primeira densificação material da energia, está controlado. Graças ao trabalho de bilhões de pessoas ao longo dos séculos. Mas vejam, isto já era novidade no século XX. A onda agora é controlar a energia em seu estado ainda imaterial, para que ela também possa ser canalizada pelas vias do silício. Estou falando do desejo. Sim, o impulso, o querer, a vontade, dê o nome que quiser, é essa dimensão imaterial que está se conseguindo canalizar. Fora isto não haverá mais nada.

Então a cena aí, para contemplarmos. O chip como modo de existência se materializando. Exemplo: a cidade. Ela é também um corpo binário, de vias e chaves. Vias por onde passamos – sem escolha, pois sempre há a smartness de um phone para nos fornecer o caminho mais rápido. O objetivo é chegar o mais rápido possível num lugar e ativar sua função, chavinha no ON. Entretenimento, trabalho. Ativa-se, cumpre-se o objetivo, desativa-se. Chavinha no OFF. A vida para nós humanos parece ter sido reduzida ao grau mínimo do movimento, o binarismo da diferença: o zero/um. Tudo é uma questão de verdadeiro ou falso. “Meu amigo: ou você está dentro da identidade que eu construí com as informações dadas, ou você simplesmente não existe. Não tem erro.” É isso que pensamos quando olhamos no espelho – seja ele opaco ou transparente.  Sim, para nós humanos não há muita liberdade, onipotência, porque nós somos apenas os peões, os elétrons.

– Zero / um. Ou se está na unidade, onde todo o universo está pleno, preenchido de sentido, sem sobras, sem espaço para criação; ou se está no absoluto vazio, na completa falta de sentido, existência sentida como pura destruição, pura morte.
– Ora, mas isto é um exagero! É possível vivenciar o meio! Estamos certos de que vivemos o meio como algo real.
-Evidentemente ainda existem nuances, ainda existe o possível, na medida em que conseguimos subverter a linearidade fixa das vias e recortar caminhos, rabiscar. Na medida em que os lugares deixarem de existir apenas para uma função. Na medida em que… nos perdemos em sombras confusas e… não há nem coragem para o suicídio e tampouco confiança para berrar na rua.
-Só que tudo isto é loucura, é clichê, é obscurantismo! Coisa de personagem de filme cult. Veja, a onda é o silício. Quem não está gozando desse hype só pode ficar com esse tom cinzento mesmo. Venha, deixa de zigue-zague e venha experimentar dEUs!

– Não é mais questão de olhar uma pedra bruta e já logo pensar em seu estado objetificado e funcional, ignorando toda singularidade, textura, diferença irredutível.
– Quem pensa essas coisas desse jeito? Você parece considerar que esse tipo de olhar é cultural, como se ele não fosse a natureza humana. Ora, pare com bobagens. Olhe ao seu redor: a tal pedra já não é bruta. É cimento, cascalho, mármore, arenito. A calçada tem linhas e se divide claramente da rua. A árvore tem seu lugar, o canteiro denota. Tem a praça, que é para o laser, há bancos para se sentar, e o lugar de cada indivíduo na sociedade, visível, tudo bem visível. Tudo dentro do globo tem identidade, endereço, de modo que a mente não precisa mais perder tempo em confusão. Se antes era necessário seres humanos para nos alinharem no caminho do controle, hoje a própria paisagem já se encarrega disso. O mundo funciona. O mundo funciona!

Sentiu essa pegada fria? Sente esse espírito terminando sua existência, fazendo os retoques finais, o acabamento da obra. A obra do silício. Tudo passa pelo seu crivo técnico. O corpo, essa imperfeição de carne ambulante, é errante demais para os trabalhos divinos. Para os resultados, confiamos mais na inteligência nanométrica de um computador, aquela que pode selecionar, recortar, copiar com perfeição; aquela com a qual o ser goza da velocidade da luz. O projeto é todo feito no software.
E a rua já está ficando linda! s2
Vê, as lojinhas tem fachadas metálicas com pintura homogênea, os letreiros, as placas, os logotipos, são impressões 3D: materializações perfeitas do projeto. O mundo material se igualará ao virtual! A cidade está avançando prodigiosamente para alcançar a funcionalidade da tela (dos nossos olhos), nossos smartphones. As funções básicas funcionam discretamente, é tudo interativo, cada opção é bem clara e definida pelo design digital, e podemos nos divertir com aplicações. Vai dizer que o site da avenida paulista não é interativo?

Mas é claro, nem todos tem endereço. Nem todas tem sua identidade… identificada. Nem mesmo todos tem smartphones. Nem tampouco o privilégio da leitura. Como já foi dito, o paraíso ainda não chegou. Mas é questão de tempo. É só você não olhar muito para isso. Não olhe o caos. Aquela viela tortuosa, escura, que te chama, cheia de pessoalidade, como num sonho? Não olhe. Aqueles rostos amassados pelo pó e pelo tempo, catando a possibilidade do Sol nascer em sacos de lixo? Não olhe. Ou olhe. É um ou zero. Se o que você quer é desgrenhar das esteiras, pode cair. Se o que você deseja é o curto-circuito, vá em frente. A loucura, o clichê, o obscurantismo dos personagens de filme cult. Mas todos esses erros de rua que você advoga por aí, com seus olhos indiscretos, serão reparados na próxima atualização. Serão eliminados porque não funcionam. E você vai sobrar no limbo, cheio de amigos suicidas.
Ainda há tempo para embarcar na onda. Controle sua vida.

Mas quem é você? Não há ninguém aqui. Estou falando comigo mesmo. Com quem estou conversando? Estou confuso. Talvez esteja possuído. Como posso ter certeza de que controlo minhas ações? Como disse, faço parte de profanos sabotadores, não sou de silício e não quero que o paraíso se instale definitivamente sobre a Terra! Dela eu quero sentir as nuances, os relevos, as diferenças de temperatura. Quero experimentar os sentidos de cada paisagem. Vejo na pedra bruta uma forma ainda não geométrica, de superfície imensurável… Estou louco. Gostaria que alguém me ajudasse a saber: como posso ter certeza de que controlo minhas ações, de que estou ajudando a causa? Onde acaba o que sou EU e começa a cidade, as máquinas, o ônibus, o smartphone? Quais são os limites entre entre entre essas coisas? Me disseram que o limite quem dá é a pessoa. Mas não sei onde fazer esse corte. Estou tomado por um desejo de ter certeza. Um desejo que me impede. Vou em direção aos fatos, então. O que de fato eu posso fazer?

Pés no chão, experimento caminhar pela rua. Posso cruzar antes do sinal abrir? Posso ignorar os limites da calçada, invadir o espaço dos carros? Posso sair à noite, sentar na sarjeta e brincar com palavras? Sentar no degrau de uma loja fechada e apoiar minhas costas naqueles portões de aço pixados? Posso olhar os pixos, demorar-me neles e apreciá-los assim, desse jeito, sem entendê-los? Nesse momento um vento sopra pelas folhas. Posso tudo isso. Mas não por muitos minutos. A hora existe e já estou pensando: o que vou fazer com essa experiência? Qual a finalidade disso? As vozes me dizem que é coisa de deixar acontecer, sentir, sem a certeza de um propósito. Então continuo a vida, vou atrás do sonho, pego metrô. Vigoroso, inspiro esse ar. Vem a náusea do metrô. Colado em um monte de gente colada. Estamos mais próximos do que eu jamais fiquei de muitas pessoas que tenho amizade. Aqui o toque precisa ser esvaziado de sentido. Aqui tudo ao redor vira… massa humana. Inferno! Parece que a homogeneização se apodera de mim, o plano cartesiano, o espírito do silício… Mas não. Eu posso, eu posso, eu posso. E o que eu faço é me demorar, reparar em cada rosto, cada jeitinho, cada estilo. Só que cada estilo faz aparecer na minha cabeça um tipo de identidade. Isso aumenta minha náusea. Assim como as televisões penduradas no teto do vagão. Ah, elas são difíceis de ignorar, com sua luz forte e colorida. Colorido mesmo, de chegar a cansar a vista, são aqueles cartazes que ficam nas paredes das estações. Porque estou olhando pra isso?! Eu realmente não controlo: quando elas mudam, de uma marca para outra, sempre reparo! E mais: examino a propaganda nova e sinto um alívio profundo. Ah, eu precisava disso! Mas não dá tempo de sentir. Nem a náusea nem o alívio. O tempo é curto e eu preciso pensar e programar o tempo. O tempo que vai levar para chegar no lugar, o tempo que vai levar para realizar o sonho, o tempo dos encontros, o tempo das desprogramações, enfim, programar o tempo. Preciso? Quero. Posso? Talvez… mas tudo isso depende da velocidade do transporte público.

Quero sentar na sarjeta novamente, sentir o meio-fio. Entrar na viela, reparar na aspereza do muro, as nuances, as irregularidades expressivas que tanto me provocam e assim acabam realmente direcionando o sentido torto da minha vida. Estou a deriva. Quero pensar sobre a cidade, mesmo não sabendo o que sou, onde começo e onde acaba o mundo. Parece que esse pensar é tanto meu quanto de tudo isso que me atravessa. Talvez eu seja a própria cidade pensando sobre a cidade.

Pode ser que a superfície terrestre não se transforme num micro-chip planetário. Como se pode ver à partir das experiências pessoais, em que o meio parece invadir e brotar no meio do campo consciente, a ação pode não ser mesmo de deus. É possível que não aconteça a sua materialização definitiva pelo silício, com sua onipotência, sua capacidade de transformar instantaneamente a vontade em realização. Mas me parece que é isso que se deseja, quando o ser humano se afirma como Deus na Terra – seja no discurso eclesiástico, seja no científico. O antropocentrismo é a certeza de que a experiência da espécie humana (seja lá o que isso for), é a consciência cósmica iluminando a escuridão da matéria. Mas quem decidiu os limites? Onde acaba o consciente e começa o inconsciente? Pensa-se no silício como uma ferramenta controlada. Mas é possível e até fácil, observando o estado atual das coisas, falar de como esse mesmo silício se utiliza de nós, de como nos tornamos ferramenta da ferramenta. É louco né? Ficou difícil falar de controle agora.
Nos parece vital trazer uma recordação: o limite quem dá é a pessoa. E esse limite, esse corte, é uma ação. Uma escolha a ser tomada e um erro a ser vivido. Mas mesmo que a consciência não se apodere desse corte, ele está se dando continuamente, a cada instante, e é essa a grande onda.

A verdade é que deseja-se esse poder absoluto. Existe uma vontade de poder. E, veja, essa frase tem uma força gravitacional tremenda, como se fosse algo do mais profundo, como se fosse um fundamento. Mas se esquece que é uma escolha, ainda. Podemos preferir ao poder, a criação. Ainda há o desejo de criação. Mas acontece que a criação se dá mesmo no encontro com o mistério. A matéria, escura, faz a luz curvar-se. Se estas fendas cósmicas forem eliminadas, o acontecimento será aprisionado no infinito.

Para terminar falando em modos de existência, ainda existe o da Terra. Uma vida. Uma natureza povoada de outras, que não se encerra numa forma. É algo que perfura os céus com o incontrolável. Algo como o desejo, uma força que provoca o espaço; instauração sólida da incerteza. Isto ainda existe e o controle não se tornará absoluto. A menos que este poder seja o objeto do nosso desejo. Mas não é.

contra o fim

 


A questão é que o chip não provoca curto circuitos por sua natureza funcional. É a natureza que provoca curtos-circuitos no chip. Este, por sua vez, ao perder o controle do silício, é preenchido novamente de corpo e de magia. E é assim que esperamos restabelecer o paganismo, finalmente. Criar um obstáculo ao fim. Pois o fim não para de se expandir.

A cidade não para de crescer porque é deus. As ruas vão se estender até o fim do horizonte, o piche vencerá o pixo e vai comer nossas peles até que não sobre mais quem perceba a cidade virando, virando ela mesma, ela mesma um messias ícone, um avatar pós-humano, perfeito e resolvido. Nada de nuances; reinado último, universo liso, liso como uma televisão.

Moedas de metal eram fabricadas por máquinas de metal, mas apenas enquanto a moeda precisava ter aparência. Hoje sua presença vibra por todos os cantos, progredindo pelos códigos, em direção à totalidade. Quando ela for puro espírito, quando a moeda transcender a matéria e libertar-se das reencarnações comerciais, dissolvendo-se em éter puro, destrinchando os sentidos, descansará o neon em nirvana químico.

Fileiras de corpos humanos, nas casas da 21ª potência, entregam seus rostos ao número redentor. Quase inúmeras, porém contáveis expressões de peles e ossos, cada uma com sua tonalidade e texturas específicas, são sacrificadas pela bênção da globalização, processo unívoco de unção do corpo pecaminoso que se chamava Terra. Espera-se assim lavar o mundo do E(r)ros. O erro do Sol vai ser devidamente reparado e os planetas serão higienizados na mais divina pureza. Não restará nada além do Todo.

Mas a crueldade dessa anti-força, esse deus-formal imaterial, é tão imensurável, que escapa ao próprio infinito de suas capacidades informacionais. E este é o seu único erro. Desta crueldade não se pode conter o último gemido. Sobra, doença ou delírio, sobra uma sensação.

Entre as partes, no vão que se esquece entre os prédios e os empreendedores, existe um espaço ainda indecifrado. Nos interstícios desse robô persiste um incalculável. Buracos negros nos cantos da sala, nos rincões do diadia. Há uma fricção que degenera e desafina o coro dos contentes. Nestes desterritórios, sobram amontoados de coisas vivas, ruminando a si próprias, misturando suas atribuições. Tudo que elas têm, elas fundem. Fundem seus órgãos, seus cartões de crédito, suas embalagens coloridas, o plástico, o cimento e a carne, fundem-se. Experiência devindo eco de uma força ainda perplexa, eco de um tempo acontecedor.

Nós que necessitamos do paganismo nos encontramos e nos aliamos a estas sobras, produzindo uma espécie de feitiçaria local, que distorce o tempo e o espaço metrificados. Produzimos micro-diferenças, despojando-nos de nós mesmos. Ainda que muitíssimo sutis e despercebidas, estas crias da qual participamos se multiplicam através de todo o espectro da existência presente. Não louvam líder nem ídolo passado, não buscam salvação objetiva, são apenas presença. Se alimentam do hoje em sua concretude mais comum e espessa, para prosseguir desejando, sem nunca se satisfazer, tampouco se castrar. Assim, não poderiam ser de outro modo que não cyber-animais, zonas-críticas, trabalhando e transando em seus computadores ritualísticos.

Foi dado o nome de curto-circuito a essas frestas onde o até lixo é gente. Nosso paganismo contra a sacralização da humanidade, essa que excluiu da vida todos os seres diferentes. Nossa estratégia são faíscas de breve duração, delírios organo-metálicos, para intensificar a crise. A crise na qual o semicondutor, signo do controle, se aquece demais, ganhando corpo, erro e vida. Este cântico virulento ainda geme em meio aos comas de silício que projetam a cidade. E para que aconteça algo diferente do previsto, será preciso sintetizar um horizonte entre o antes e o depois

de insônia

 

Ele explica que o sono é produzido ou quando as partículas de alma espalhadas pelo corpo se concentram, ou quando elas se dispersam e escapam pelos poros.

Diógenes Laércio, “Carta de Epicuro a Heródoto”

*

Não conseguir dormir não significa nada. Ninguém consegue. As pessoas só se deixam largar. É um abandono de remos. Ruim mesmo é não ser aceito pelo sono. É largar os remos mas não haver metáfora de mar, e descobrir-se deitado na cama, numa posição um pouco torta, sem símbolos e sem remos. Não há mar da vida que te carregue a suposta jangada. Tal imagem é um prego mental, duro na cabeça, ela, essa sim, a rolar irregular pelo travesseiro. Ao sentir a estranheza do pescoço, o corpo aparece totalmente concreto, impondo a vida sem lirismo. Não há nada mais distante que o mar. Força maior? Eu não sinto força maior do que a própria eletricidade nervosa. Minha identidade poderia ser, toda ela, medida em watts.


Eu ali na cama, pensando e pensando. Presumindo que as pessoas dormem porque alcançam um chão da subjetividade, um solo interno. Uma espécie de piso, impossível e ao mesmo tempo muito prático, visto que dormir é das coisas vitais. Pensava: “O desejo ganha corpo pelos signos, pelos símbolos, pelas histórias, memórias, esses são seus órgãos inorgânicos, com os quais faz um corpo! Corpo humano, corpo cidade, corpo palavra, animal, entidade.” Corpo jangada-no-mar, diria agora. “O desejo tem toda uma outra diversidade de tecidos e vísceras um tanto misteriosas. Morfeu deve ser um deus com mãos feitas de sonho e sangue, tão delicadas, que… que consegue metê-las na nossa cabeça!, sim!, e com a ponta dos dedos, transfere a consciência para esse nosso outro corpo.” Faz sentido. Esse poder só seria possível com uma delicadeza suprema, visto que a distância entre o sono e a vigília é menor do que o diâmetro de um elétron.

Certo. Morfeu chega para autorizar a passagem e efetuar a transferência, mas o mundo do sonho é por nossa conta. E a construção é penosa. Sua arquitetura que parodia a física, suas leis lânguidas, seus universos holográficos… toda essa construção é de nossa responsabilidade. E naquela noite, não havia sinais dessa outra física, desse outro corpo.
Mesmo com o pensamento cheio de metáforas, imaginações até bem precisas, era tudo muito abarrotado de palavras. E não havia espaço para despejar em mim nem uma gota de mar ou de chão. Eu estava ali, necessariamente ali, naquela noite, naquele quarto, naquela cama, com o lençol amassado e entrelaçado a mim daquela exata maneira. Coisas que minha pele e minha mente faziam questão de deixar claro. Tudo, tudo tão claro, tão perceptível… A luz da mente é sem dúvida mais clara do que o Sol. E como isso é infernal na noite.

Eu pensava profundamente, como uma equipe de investigação policial vasculha uma casa, revirando tudo, anotando detalhes, fotografando o pequeno e analisando o grande. Não havia partes incômodas da memória que eu não tivesse trazido à tona. Nem tampouco deixei de lado padrões e hábitos. Havia deles um dossiê. A certo ponto, já havia dezenas de explicações para o crime. Eu havia atentado contra a minha saúde mental e a insônia seria a minha pena. Comer açúcar a tal hora, não ter carinho de noite, concentrar-se em telas digitais… estas eram pistas indispensáveis, mas que se ligavam à mais importante de todas: eu não conseguia parar de pensar. Pois é pensando sobre a própria compulsão de pensar, que eu retirava uma nova explicação a cada segundo. Pensando sobre pensar sobre a compulsão de pensar, e por aí vai, exponencialmente, até o pensamento deixar de produzir sentido para ser apenas uma outra forma de eletricidade. Outra tela digital.

O sono não me aceitaria. Morfeu não encontraria o corpo do desejo, não encontraria um mundo onírico, fresco: tudo já tinha sido mastigado pela luz da consciência. Ruminava com olhos na língua.


A madrugada avançava muito rápido. O tempo tinha uma velocidade desmedida. Não por uma desatenção minha ao tempo – dessas delícias que fazem das horas minutos. Não, não havia desatenção. Eu era pura diligência. Cada fração de segundo era militarmente apreendida pela consciência. A causa da alta velocidade era mais uma questão de os milésimos estarem ainda mais curtos, escassos, como se a ampulheta do tempo estivesse vazando. Não, não havia desatenção ao tempo; pelo contrário, eu me atentava demasiadamente. O corpo jorrava em si mesmo. A percepção tinha a superfície de contato de uma árvore, mas sem estrutura alguma. Pela voracidade com que apreendia cada micromovimento, pela impossibilidade de dormir e mesmo de relaxar, a sensação poderia ser análoga a estar sendo arrastado pela correnteza de um rio voraz. A diferença é que o desfecho fatal não seria a morte por afogamento, mas sim a própria manhã fustigando o quarto, acabando enfim com todas as possibilidades de descanso e me lançando novamente ao imperativo da consciência. Não poderia deixar que amanhecesse. Precisava me livrar daquela aceleração. Mas como? Sem tornar-me ainda mais consciente?

Se havia alguma necessidade, era a de me arrancar de onde eu estava, de como eu estava. Por isso, a analogia de ser arrastado pelo rio voraz não ilustra algo atraente para Morfeu. Não era uma questão de conseguir deixar-se levar. Pelo contrário. Eu já estava sendo levado pelo momento. Mas, paradoxalmente, era um momento que eu mesmo construía, segundo a segundo. Eu queria era ter algum controle, mas era o controle que me controlava. Como tirar a não-ação da ação? O desejo de modificar algo que se vive: tem ele a capacidade de, por si mesmo, deixar de existir?!


Loucura. Por que perder tempo com esses paradoxos? Isso sim é uma perturbação. E que desperdício de energia! Pense economicamente, haja racionalmente. Tome as decisões corretas agora. Não, exatamente agora. Você não percebe que está deixando passar a oportunidade? O momento de agir é precisamente agora. Vamos! Haja! Decida!

Mas já estou decidindo. Observando a mente e seu sequenciamento de objetos, tenho a clara impressão de uma tomada de decisões em alta frequência. Tantas decisões por segundo que não consigo discernir se estas se dão uma a uma ou continuamente. E mesmo fora do intelecto, quando tentava me ater às percepções do corpo, a questão do foco é totalmente decisória. Focar na respiração, respirar. Focar na imaginação, imaginar. A questão é que, quando se conta com sua estabilidade para salvar a própria sanidade, tanto os objetos do pensamento quanto da percepção são avassaladores. Ganham importância, arrombam a porta de entrada e decidem seus próprios contornos. A objetos do meu pensamento, as partes do meu corpo, “minhas posses”, todas, me venciam. Decidir sobre eles era na verdade sofrer a disputa deles sobre mim. Melhor mesmo seria não decidir nada. Não suprimir nem afrouxar, não controlar nada e apenas deixar acontecer. Mas como se decide isso? Era uma questão de sorte: “tomara que aconteça…”. Tentei me entregar para algo que não existia, pois nada era maior do que eu.

As horas passavam. O cuco, que canta a cada meia hora, enfiava essa informação. Já estava em dúvida sobre a própria possibilidade geral de dormir. “Como é paradoxal. O sono só acontece. Nós não nos lembramos nem mesmo dos momentos anteriores aos momentos anteriores… A gente deixa de existir por uns momentos. Isso é impossível, impensável.”

Não cabe mais perguntar qual seria a força maior à qual eu deveria me render para deixar acontecer o sono. Eu já estava rendido. Naquela noite, era nítida a diferença entre o ato de rendição e a condição de rendido. Algo aliado à vigília estava subjugando tudo que se aliava ao sono. E, no meio disso, não havia “eu”. Não é que “eu” estava querendo dormir e algo “em mim” não deixava. Não havia sujeito. A sensação das ondas elétricas percorrendo o corpo sem direção, o processo mental maquínico e acelerado, a dialética quântica na velocidade da luz… Era absurdo. Não havia sujeito para estabelecer seus objetos. Não havia ordem, contornos, linearidade ou qualquer consistência subjacente às coisas. E tudo, as palavras e os sons, eram todas “coisas”. Um turbilhão de estímulos que jorrava desde tudo, desde a pele, desde a sopa elétrica nos órgãos, até mesmo desde as palavras, de seus sentidos e seus sons. A palavra “eu” era só uma percepção violenta, uma válvula que liberava a passagem de densos amontoados de coisas. “Eu”, o mundo, as ideias, as reflexões… todas eram coisas “em si”; a existência era inteiramente material. Não apenas Deus estava morto, mas o próprio sentido.

Um totalitarismo da matéria, que se intensificava e preenchia tudo de física – desde as ondas até os corpos. Se até os pensamentos mais elaborados pareciam acontecer sem nenhuma relação com um “eu”, é possível pensar que isso, esse “eu”, estava morrendo. Era uma experiência de morte. Os pensamentos eram fenômenos tão significativos quanto a gravidade ou a ondulatória. É claro que isso é científico, filosófico, mas não fazia sentido. Entender não ajudava a fazer sentido. Algo pensava sobre si, algo duvidava da própria existência: o cogito estava lá e realmente existia. Mas isso não significava nada. O pensamento era apenas a parte mais sofisticada, fina e delicada da matéria. Uma pérola do evolucionismo aleatório, sem testemunhos de sua “beleza”. O organismo e o sistema nervoso em funcionamento, como puro produto do encontro fortuito de acasos, combinações peculiares de tempo e de espaço. A morte pelo real.

Está certo que, de algum lugar, algo precisa falar no lugar de ser vivo. Algo tem que ser estranho nessa dimensão material. Algo necessário, como era necessária a intervenção de um demiurgo aos antigos, como era necessário o milagre cristão a um mundo dominado pelos desejos, tão necessário quanto a existência de alguma subjetividade num universo amoral, (des)controlado pela causalidade. Se é o que chamamos de alma ou de espírito, eu não sei, mas era isso que me faltava. Era o caso mesmo de meu corpo estar possuído.

Parece contraditório, visto que eu falava até agora de um preenchimento absoluto. Mas é isso que estou chamando de possessão. E o que a alma faz no corpo é justamente criar um espaço. Abrir um vácuo, um vazio, uma obscuridade intransponível. Se a alma, pensada como necessidade, é algo de bom, é pelo fato de que ela despossui o corpo, criando a liberdade. Que é impossível, mas existe.

Num paroxismo da desilusão, o “eu” parecia estar interditado. Dominado pela capacidade de apreender a existência como ela é, meu corpo estava possuído por ela, preenchido de percepção e lógica. Seria o momento da intervenção divina? Ainda que fosse, pensei, não deixaria de ser um mecanismo interior à matéria.

Então, feroz e inconsequente, surgiu a necessidade de recriar a fenda. A alma, o espírito ou qualquer coisa que possa ser relacionado com a vida em liberdade – força estranha, indeterminável – iniciava seu processo de ruptura e desapropriação. Desde a sensação, passando pela linguagem, restabelecendo o sentimento e finalmente reconstituindo o espaço existencial de um sujeito, essa coisa que sente que pensa que escolhe.

Sentia uma alforria progressiva dos elétrons em meus nervos. Do nível do elétron ao átomo, do atômico ao molecular, do molecular ao molar, aos tecidos orgânicos e assim por diante. Cada escala apresentava uma barreira ontológica sendo derrubada por essa força impossível. A respeito das prováveis imagens que “derrubada de barreiras” pode evocar, cabe dizer: não se tratava de algo belo, glorioso ou
triunfal. Nada nessa retomada de mim tinha modos heroicos. Era mais como uma monstruosidade. A alma era uma besta tão inconsciente quanto mágica. Um animal incorpóreo faminto por realidade.

Mais impensável que seja, era como se estivesse reestabelecendo o imaterial, e para isso, delimitando uma nova fronteira entre esse reino e o da matéria. Em resposta a esses movimentos, o corpo começou a sacudir. Como que querendo se livrar de uma dor impregnada na própria percepção de si, eu me sacudia. Errático, como um cachorro quando molhado. Sem nenhuma delicadeza ou elegância, me apropriava da minha própria força, forçando-a a me pertencer. Fazia me existir, mesmo que não houvesse nenhuma lógica nisso.

Mas é possível dizer: a diferença estava em deixar de procurar “focos” para realmente agir sobre pontos do corpo. Em vez de perceber minha perna, eu a mexia. Apertava os punhos, em vez de constatá-los. Me retorcia, em vez de ser dominado pela obrigação de abandonar-se. Tudo se traduziu numa tentativa de agarrar coisas como se pudesse arrancá-las. Sentir o limite ósseo, a dureza dos dedos, das unhas, senti-las raspando nos tecidos lisos da cama; esticava meu pescoço, levantava o tronco com as pernas e apoiava o peso do corpo na minha cabeça. Mais de uma vez, até que estas coisas passavam a desenhar contornos, limites. A dor que existia para aquele corpo, passava a doer para alguém.

Antes desse momento, ao longo da noite, as palavras haviam passado voando pela minha mente, como nuvens de pássaros incomunicáveis que se chocam violentamente uns com os outros; o pensamento acontecia afirmando e negando instantaneamente tudo. Mas ao me sentir, depois de tanto tempo, responsável pelo meu próprio movimento, as palavras se reorganizaram em formas simples, diretas e sólidas. Surgiram frases como “eu quero sair daqui”, “não quero mais viver isso”, “não aguento, não aguento passar por isso”. Quando eu percebi que estava pensando estas frases, elas não pareciam mais criaturas aladas autônomas, mas antes, sentia que elas realmente reverberavam de acordo com as vibrações da minha dor. Havia um princípio de coesão. Meu corpo, que até então estava completamente desconexo, como entulho, como um aglomerado de objetos incomunicáveis que atritavam aleatoriamente entre si, engendrou, não sei de onde, uma estrutura. Suas partes começaram a estabelecer um tipo de comunicação, até chegar a formar acordos e alianças rudimentares. Eu consegui sentir isso com tanta nitidez! Foi aí que eu vivi o primeiro sentimento em muitas horas, para além da dor: estava triste. Reencontrado comigo, percebi-me num estado do qual a tristeza era substância e não representação.

E já não importava dormir. Aceitei a luz do céu que, projetando os contornos da árvore sobre janela, já anunciava a manhã. Essa luz me confirmou um fato precisamente triste e um pouco assustador. Que algo intimamente meu mas que não era eu, precisamente isso, tinha impedido que eu conseguisse ter uma noite de sono. Me privou do sono, coisa tão vital que nem soberanos negam a seus súditos. Ai, a luz e seus anúncios horríveis! Diante do que tinha acabado de acontecer, eu senti a mais profunda vontade de chorar. E não chorei. Antes eu berrei, urrei, gemi. Quis afastar o medo. Durante vinte minutos, explorei todas as minhas energias pra conseguir emitir os sons mais insignificantes possíveis, como que para garantir, da maneira mais agressiva, que eu tinha
vontade própria. Fiz isso até a garganta começar a doer agudamente. E eu sabia: essa dor só podia ter sido provocada por mim. Uma espécie de satisfação autoritária me percorreu, e logo em seguida percebi que estava esgotado.

David Schab, Morning coffee, 2019

Percebendo que não existia mais nenhuma energia disponível, eu senti um alívio gelado. Um vento inexistente parecia assoprar nas paredes internas de meu corpo esvaziado, produzindo uma sensação impossível de frescor escuro. Esse vazio estranho, pensei, não conseguirei descrever a ninguém. Nem palavra nem gesto conseguirão comunicar isso. Só a mim coube a dimensão desse sofrimento. E só a mim, também, caberá o cuidado correspondente. Então, fui acometido pela auspiciosa sensação de ter acabado de conhecer alguém totalmente estranho. Não sei do que se tratava isso, só sei que, depois de sentí-lo, finalmente pude chorar. Por outros vinte minutos, apoiado nas pernas dobradas, chorei como uma criança, até cair deitado. Então, dormi – não muito tempo depois, eu acho.

04/08/21

rostos e outros brinquedos

 

Quem me dá resposta?
Quem me dá um ouvido?
Quem me dá um rosto
que se afeta ao ter
outro rosto em frente
que se afeta ao ser,
simplesmente?

Que se afeta ao ser?