O silício é a nova
onda. Todo mundo está atrás desse hype. O micro-chip como objeto-símbolo
da glória. O sucesso. “Trabalhai com o silício e poderás reduzir
infinitamente o tempo entre o objetivo e o resultado.” Foi isto que a
vida me ensinou. Você consegue imaginar? Imediatamente, querer e
conseguir! Isso não seria a experiência de dEUs?
Mas eu não me
sinto assim. Meus amigos estão se suicidando e os que não conheço de
perto estão sendo assassinados por suicidas. O tempo de fato se reduz,
mas não para de ficar menor. Então, essa glória de silício… Pra quem ela
funciona? Talvez estejamos redescobrindo que o ser humano foi mesmo uma
invenção divina. Cordeirinhos lógicos.
⊗
Deus quer e deus faz acontecer. Ele vai descer à Terra, gozar de
existência sólida, incorporar-se, sem por isso deixar que as
dificuldades da matéria impeçam o livre exercício de sua existência
divina. Ele descerá e continuará onipotente. Mas qual será o corpo que
assumirá? Nós, o pessoal do círculo de profanos sabotadores, ficamos
sabendo que a glória do silício está reservada para um avatar
não-humano. O paraíso sobre a Terra está próximo, muito próximo de
acontecer. Mas nós não vamos experienciar isto, porque está para além dos sentidos, como já foi repetido tantas vezes.
É
possível, no entanto, ter um vislumbre. Vocês já devem ter visto as
imagens aéreas da cidade e das zonas rurais. (O satélite tem a visão dos
anjos, porque pode ver os movimentos de deus na Terra.) Sim, você está
vendo um grande chip. Tudo está medido, toda a superfície terrestre,
esquadrinhada. Não há mais um “fora”. Agora falta apenas trabalhar os
sólidos que ainda apresentam alguma irregularidade. Aos poucos tudo vai
assumindo a forma de uma plano cartesiano bidimensional. A altura? É
apenas a possibilidade de se empilharem os planos. Você pensava que a
imagem de deus fosse uma coisa mais bela, não é mesmo?
Podemos perceber que tudo é uma questão de asfaltar, de se expandirem
as vias, de se multiplicarem – controladamente – os canais por onde
passa a energia. Que energia? Ora, são os elétrons, finalmente
controlados. Após dois milênios de domesticação da Terra, o impulso
elétrico, o sutil, a primeira densificação material da energia, está
controlado. Graças ao trabalho de bilhões de pessoas ao longo dos
séculos. Mas vejam, isto já era novidade no século XX. A onda agora é
controlar a energia em seu estado ainda imaterial, para que ela também
possa ser canalizada pelas vias do silício. Estou falando do desejo.
Sim, o impulso, o querer, a vontade, dê o nome que quiser, é essa
dimensão imaterial que está se conseguindo canalizar. Fora isto não
haverá mais nada.
Então a cena aí, para contemplarmos. O chip
como modo de existência se materializando. Exemplo: a cidade. Ela é
também um corpo binário, de vias e chaves. Vias por onde passamos – sem
escolha, pois sempre há a smartness de um phone para nos fornecer o caminho mais rápido. O objetivo é chegar o mais rápido possível num lugar e ativar sua função, chavinha no ON. Entretenimento, trabalho. Ativa-se, cumpre-se o objetivo, desativa-se. Chavinha no OFF.
A vida para nós humanos parece ter sido reduzida ao grau mínimo do
movimento, o binarismo da diferença: o zero/um. Tudo é uma questão de
verdadeiro ou falso. “Meu amigo: ou você está dentro da identidade que
eu construí com as informações dadas, ou você simplesmente não existe.
Não tem erro.” É isso que pensamos quando olhamos no espelho – seja ele
opaco ou transparente. Sim, para nós humanos não há muita liberdade,
onipotência, porque nós somos apenas os peões, os elétrons.
–
Zero / um. Ou se está na unidade, onde todo o universo está pleno,
preenchido de sentido, sem sobras, sem espaço para criação; ou se está
no absoluto vazio, na completa falta de sentido, existência sentida como
pura destruição, pura morte.
– Ora, mas isto é um exagero! É possível vivenciar o meio! Estamos certos de que vivemos o meio como algo real.
-Evidentemente
ainda existem nuances, ainda existe o possível, na medida em que
conseguimos subverter a linearidade fixa das vias e recortar caminhos,
rabiscar. Na medida em que os lugares deixarem de existir apenas para
uma função. Na medida em que… nos perdemos em sombras confusas
e… não há nem coragem para o suicídio e tampouco confiança para berrar
na rua.
-Só que tudo isto é loucura, é clichê, é obscurantismo!
Coisa de personagem de filme cult. Veja, a onda é o silício. Quem não
está gozando desse hype só pode ficar com esse tom cinzento mesmo.
Venha, deixa de zigue-zague e venha experimentar dEUs!
⊗
– Não é mais questão de olhar uma pedra bruta e
já logo pensar em seu estado objetificado e funcional, ignorando toda
singularidade, textura, diferença irredutível.
– Quem pensa essas coisas desse jeito? Você parece considerar que esse tipo de olhar é cultural, como se ele não fosse a natureza humana.
Ora, pare com bobagens. Olhe ao seu redor: a tal pedra já não é bruta. É
cimento, cascalho, mármore, arenito. A calçada tem linhas e se divide
claramente da rua. A árvore tem seu lugar, o canteiro denota. Tem a
praça, que é para o laser, há bancos para se sentar, e o lugar de cada
indivíduo na sociedade, visível, tudo bem visível. Tudo dentro do globo
tem identidade, endereço, de modo que a mente não precisa mais perder
tempo em confusão. Se antes era necessário seres humanos para nos
alinharem no caminho do controle, hoje a própria paisagem já se
encarrega disso. O mundo funciona. O mundo funciona!
Sentiu essa
pegada fria? Sente esse espírito terminando sua existência, fazendo os
retoques finais, o acabamento da obra. A obra do silício. Tudo passa
pelo seu crivo técnico. O corpo, essa imperfeição de carne ambulante, é
errante demais para os trabalhos divinos. Para os resultados, confiamos
mais na inteligência nanométrica de um computador, aquela que pode
selecionar, recortar, copiar com perfeição; aquela com a qual o ser goza
da velocidade da luz. O projeto é todo feito no software.
E a rua já está ficando linda! s2
Vê,
as lojinhas tem fachadas metálicas com pintura homogênea, os letreiros,
as placas, os logotipos, são impressões 3D: materializações perfeitas
do projeto. O mundo material se igualará ao virtual! A cidade está
avançando prodigiosamente para alcançar a funcionalidade da tela (dos
nossos olhos), nossos smartphones. As funções básicas funcionam
discretamente, é tudo interativo, cada opção é bem clara e definida pelo
design digital, e podemos nos divertir com aplicações. Vai dizer que o
site da avenida paulista não é interativo?
Mas é claro, nem todos
tem endereço. Nem todas tem sua identidade… identificada. Nem mesmo
todos tem smartphones. Nem tampouco o privilégio da leitura. Como já foi
dito, o paraíso ainda não chegou. Mas é questão de tempo. É só você não
olhar muito para isso. Não olhe o caos. Aquela viela tortuosa, escura,
que te chama, cheia de pessoalidade, como num sonho? Não olhe. Aqueles
rostos amassados pelo pó e pelo tempo, catando a possibilidade do Sol
nascer em sacos de lixo? Não olhe. Ou olhe. É um ou zero. Se o que você
quer é desgrenhar das esteiras, pode cair. Se o que você deseja é o
curto-circuito, vá em frente. A loucura, o clichê, o obscurantismo dos
personagens de filme cult. Mas todos esses erros de rua que você advoga
por aí, com seus olhos indiscretos, serão reparados na próxima
atualização. Serão eliminados porque não funcionam. E você vai sobrar no
limbo, cheio de amigos suicidas.
Ainda há tempo para embarcar na onda. Controle sua vida.
⊗
Mas quem é você? Não há ninguém aqui. Estou falando comigo mesmo. Com
quem estou conversando? Estou confuso. Talvez esteja possuído. Como
posso ter certeza de que controlo minhas ações? Como disse, faço parte
de profanos sabotadores, não sou de silício e não quero que o paraíso se
instale definitivamente sobre a Terra! Dela eu quero sentir as nuances,
os relevos, as diferenças de temperatura. Quero experimentar os
sentidos de cada paisagem. Vejo na pedra bruta uma forma ainda não
geométrica, de superfície imensurável… Estou louco. Gostaria que alguém
me ajudasse a saber: como posso ter certeza de que controlo minhas
ações, de que estou ajudando a causa? Onde acaba o que sou EU e começa a
cidade, as máquinas, o ônibus, o smartphone? Quais são os limites entre
entre entre essas coisas? Me disseram que o limite quem dá é a pessoa.
Mas não sei onde fazer esse corte. Estou tomado por um desejo de ter
certeza. Um desejo que me impede. Vou em direção aos fatos, então. O que
de fato eu posso fazer?
Pés no chão, experimento
caminhar pela rua. Posso cruzar antes do sinal abrir? Posso ignorar os
limites da calçada, invadir o espaço dos carros? Posso sair à noite,
sentar na sarjeta e brincar com palavras? Sentar no degrau de uma loja
fechada e apoiar minhas costas naqueles portões de aço pixados? Posso
olhar os pixos, demorar-me neles e apreciá-los assim, desse jeito, sem
entendê-los? Nesse momento um vento sopra pelas folhas. Posso tudo isso.
Mas não por muitos minutos. A hora existe e já estou pensando: o que
vou fazer com essa experiência? Qual a finalidade disso? As vozes me
dizem que é coisa de deixar acontecer, sentir, sem a certeza de um
propósito. Então continuo a vida, vou atrás do sonho, pego metrô.
Vigoroso, inspiro esse ar. Vem a náusea do metrô. Colado em um monte de
gente colada. Estamos mais próximos do que eu jamais fiquei de muitas
pessoas que tenho amizade. Aqui o toque precisa ser esvaziado de
sentido. Aqui tudo ao redor vira… massa humana. Inferno! Parece que a
homogeneização se apodera de mim, o plano cartesiano, o espírito do
silício… Mas não. Eu posso, eu posso, eu posso. E o que eu faço é me
demorar, reparar em cada rosto, cada jeitinho, cada estilo. Só que cada
estilo faz aparecer na minha cabeça um tipo de identidade. Isso aumenta
minha náusea. Assim como as televisões penduradas no teto do vagão. Ah,
elas são difíceis de ignorar, com sua luz forte e colorida. Colorido
mesmo, de chegar a cansar a vista, são aqueles cartazes que ficam nas
paredes das estações. Porque estou olhando pra isso?! Eu realmente não
controlo: quando elas mudam, de uma marca para outra, sempre reparo! E
mais: examino a propaganda nova e sinto um alívio profundo. Ah, eu
precisava disso! Mas não dá tempo de sentir. Nem a náusea nem o alívio. O
tempo é curto e eu preciso pensar e programar o tempo. O tempo que vai
levar para chegar no lugar, o tempo que vai levar para realizar o sonho,
o tempo dos encontros, o tempo das desprogramações, enfim, programar o
tempo. Preciso? Quero. Posso? Talvez… mas tudo isso depende da
velocidade do transporte público.
Quero sentar na sarjeta
novamente, sentir o meio-fio. Entrar na viela, reparar na aspereza do
muro, as nuances, as irregularidades expressivas que tanto me provocam e
assim acabam realmente direcionando o sentido torto da minha vida.
Estou a deriva. Quero pensar sobre a cidade, mesmo não sabendo o que
sou, onde começo e onde acaba o mundo. Parece que esse pensar é tanto
meu quanto de tudo isso que me atravessa. Talvez eu seja a própria
cidade pensando sobre a cidade.
⊗
Pode ser que a superfície terrestre não se
transforme num micro-chip planetário. Como se pode ver à partir das
experiências pessoais, em que o meio parece invadir e brotar no meio do
campo consciente, a ação pode não ser mesmo de deus. É possível que não
aconteça a sua materialização definitiva pelo silício, com sua
onipotência, sua capacidade de transformar instantaneamente a vontade em
realização. Mas me parece que é isso que se deseja, quando o ser humano
se afirma como Deus na Terra – seja no discurso eclesiástico, seja no
científico. O antropocentrismo é a certeza de que a experiência da
espécie humana (seja lá o que isso for), é a consciência cósmica
iluminando a escuridão da matéria. Mas quem decidiu os limites? Onde
acaba o consciente e começa o inconsciente? Pensa-se no silício como uma
ferramenta controlada. Mas é possível e até fácil, observando o estado
atual das coisas, falar de como esse mesmo silício se utiliza de nós, de
como nos tornamos ferramenta da ferramenta. É louco né? Ficou difícil
falar de controle agora.
Nos parece vital trazer uma recordação: o
limite quem dá é a pessoa. E esse limite, esse corte, é uma ação. Uma
escolha a ser tomada e um erro a ser vivido. Mas mesmo que a consciência
não se apodere desse corte, ele está se dando continuamente, a cada
instante, e é essa a grande onda.
A verdade é que deseja-se esse poder absoluto. Existe uma vontade de poder. E, veja, essa frase tem uma força gravitacional tremenda, como se fosse algo do mais profundo, como se fosse um fundamento. Mas se esquece que é uma escolha, ainda. Podemos preferir ao poder, a criação. Ainda há o desejo de criação. Mas acontece que a criação se dá mesmo no encontro com o mistério. A matéria, escura, faz a luz curvar-se. Se estas fendas cósmicas forem eliminadas, o acontecimento será aprisionado no infinito.
Para terminar falando em modos de existência, ainda existe o da Terra. Uma vida. Uma natureza povoada de outras, que não se encerra numa forma. É algo que perfura os céus com o incontrolável. Algo como o desejo, uma força que provoca o espaço; instauração sólida da incerteza. Isto ainda existe e o controle não se tornará absoluto. A menos que este poder seja o objeto do nosso desejo. Mas não é.
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