30/09/20

um espetáculo retórico

 30/09/2020

Acho que esse “debate” foi uma ilustração muito clara da política hoje, e tem bastante coisa pra nos ensinar. A arena cibernética do espetáculo, modulada pelas potências tecnocráticas, armou um espaço (pseudo)público em que o debate racional é substituído pela luta retórica, finalmente caindo numa luta performática. Quer gostemos ou não, esta é a substância da política que temos pra hoje. Os representantes da esquerda ou, melhor, da oposição democrática, devem se preparar pra isso.

O trump é treinado na TV, treinado na faculdade do espetáculo. Ele sabe que pra vencer, nesse meio, a retórica é muito mais importante do que o raciocínio. Muito mais eficaz do que desenvolver uma cadeia profícua de pensamento, é mostrar força, retidão, confiança e certeza. Quebrando as regras da decência, ele fura falas, exibe sua agressividade, sem nunca pensar antes de falar, sem nenhum traço de hesitação. Nós ficamos com raiva porque ele quebra as regras do jogo democrático tradicional, e isso não pesa contra. Muito pelo contrário.

É essa dimensão performática da política que determina o avanço de projetos hegemônicos, hoje. E a sofística clássica já nos ensinou: mostrar que sabe é muito mais importante do que saber. Aliás, se saber significa ter consciência plena da atual conjuntura, bem… a expressão desse saber será carregada de nuances, complexidades, aporias e até incertezas. Em outras palavras, nesse ringue retórico, se você sabe, se você opta pela racionalidade ponderada, você está em desvantagem. Pois quem pondera, quem pensa de fato, HESITA antes de sair falando a primeira coisa que vem na cabeça. E o trump não hesita.

A expressão CORPORAL de uma pessoa honesta e fiel à verdade, hoje em dia, está necessariamente temperada pela consciência da fragilidade. Quem sabe está mais confuso do que quem ignora. Mas sempre foi assim: quem pensa enfrenta dificuldade. No entanto, expressar dificuldade e requerir o engajamento ativo do público, é péssimo pro ibope, pra TV, pro espetáculo, pro show bis, pras redes sociais, etc.

Claro, um hipotético candidato de oposição poderia optar, nesse ringue, por ser o contraponto à sofística do trump, e fazer o papel frio da razão e da lógica sensata. Essa estratégia já seria arriscada, em função do que eu falei acima. Mas nem isso o biden conseguiu. E quando ele tentou entrar no registro retórico e brigão, nossa… deu pena e vergonha. Ele pareceu um misto de menininho-velhinho, sofrendo bullying de um adolescente, sem conseguir pensar direito, porque não está treinado pra agir de bate pronto em uma situação fleumática de conflito testosterônico. Só quando o mediador conseguiu tornar o ambiente mais “adulto”, que ele pôde respirar e soltar a precaríssima cadeia de ideias que ele tinha trazido.

Penso que este debate é um modelo pra debates futuros. Representantes da oposição democrática deverão estar preparados corporalmente para o conflito com os obtusos da extrema direita, por mais que isto nos desagrade. No entanto, mais do que um modelo, esse debate foi alegórico, pois representa o modo da dinâmica política atual, como um todo. A dimensão retórica, performática e estética, são as armas mais letais (e também mais eficazes) que os agentes políticos podem ter.

Cada vez mais a realidade vai se tornando digital, a mídia vai se impondo sobre o meio, a mediação tecnológica vai dominando a imediação do corpo. O espaço público moderno, que nunca foi uma ágora grega, vai se distanciando mais e mais desse seu ideal democrático, no qual ideias reais seriam debatidas num clima de intelectualidade. As empresas de big tech, com as redes sociais, ampliam exponencialmente a realidade da tese de Guy Debord, e tudo é sempre espetáculo. O debate presidencial é muito mais uma representação dele mesmo, que serve pra ser consumido através das telas. Por esse motivo, deve agradar e estimular, mais do que fazer pensar e instigar. É o que o público espera. Por isso o trump tem vantagem nele. Ele é um ótimo personagem. Ele performa com excelência.

Realidade desesperadora, a verdade não tem tido força contra o inimigo. Mas isso é justamente porque estamos lidando com o fascismo. Claro, é uma versão macabra, que coopta mais pela sedução do que pela intimidação. A negação da diferença e da complexidade (a realidade) e a afirmação de um mundo simplificado pelos signos “economia-família-trabalho” (uma quimera), é injetada pelas telas, em direção a corações ansiosos e carentes de certeza. Mas não deixa de ser fascismo.

Diante de um debate como esse e também de certas discussões análogas, vejo grande parte de nós, opositores, colocando a mão no rosto. Envergonhados, damos alguns passos pra trás e nos afastamos da briga, como quem diz: “meu deus, que selvageria.” Nós desprezamos o inimigo.

Somos adultos demais para isso, civilizados demais. No máximo fazemos uma crítica ponderada, apontando erros lógicos do discurso do trump, sua falta de embasamento, suas mentiras descaradas. Mas nós sabemos, no fundo amargo de nossa consciência, que todas essas críticas, por si só, não ajudam, não produzem, não fazem nenhuma diferença. E esse amargor, essa frustração moderna, acaba se apoderando de nós, de nossa postura política, tornando-nos resignados, orgulhosamente resignados. A falta de civilidade nos enoja e, diante desses seres guiados pela paixão e pela performance (trump/bozo), optamos por nos confortar dentro da nossa razão, da nossa velha e boa alma. É compreensível e, de certo modo, aceitável. Contudo, esse desprezo pelo inimigo tem se mostrado a nossa grande fraqueza, pelo modo como ele nos desmotiva e nos desmobiliza.

Na minha opinião, já não há mais tempo pra esperar o inimigo aparecer do outro lado da mesa, de cara lavada e bem perfumado. Esperar ele admitir suas descomposturas e se apresentar sereno, ávido por uma conversa séria, racional. Penso que não podemos mais ficar torcendo pro combate se conformar aos termos mornos do diálogo. Em vez disso, encaremos o termômetro. A temperatura é alta e não para de subir. Podemos nos reconfortar infinitas vezes na certeza de que estamos certos. Mas isso não muda o fato de que o inimigo está avançando. E talvez, por isso mesmo, não estejamos certos.

É claro que não devemos nos despojar da ciência, da linguagem democrática e do conhecimento social. O legado moderno ainda tem utilidade. Ainda que cada vez mais raros, ainda há espaços para debater com aquela pessoa que pensa diferente. Existe uma população indecisa, que está disposta a dialogar de boa fé. Mas é preciso reconhecer: essas oportunidades são fortuitas e não configuram a regra de nosso tempo.

Nós sabemos, nós estudamos e construímos conhecimento. Nutrimos a relação com a verdade. Isso é ótimo porque preenche nosso discurso de conteúdo e embasamento. A questão é que falta colocar uma atenção urgente no modo como discursamos. Ou melhor: devemos aprender a performar. Para lidar com o inimigo obtuso do fascismo, o mais importante é vencê-lo, não refutá-lo. A ágora foi destruída, restou o coliseu.

O espaço público tornou-se uma arena digital em que se enfrentam performances, mais do que discursos. Mais do que intimidar, o binômio bozo-trump seduz, com uma performance que canaliza processos de identificação. Nada melhor para o espetáculo do que isso. Performance sutil, feita de reacts, de likes, de posts, mas não importa: o que conta é a força pra afetar quem assiste.

Temos que jogar o jogo. Não adianta ficar reclamando que o mundo é uma merda, que a sociedade do espetáculo é uma distopia perfeita e que a história chegou ao fim. Ser utópico é conseguir inventar um motivo pra levantar da cama contra o fascismo, mesmo que isso tenha que ser feito numa arena sofisticamente construída e controlada pelo neoliberalismo. Quem sabe assim possamos derrubar esse inimigo bruto, para amanhã podermos enfrentar o inimigo mais sutil e complexo que é o establishment. Mas, infelizmente, no momento a urgência é barrar estas quimeras fascistas, e isso não vai ser na base da compostura e da serenidade.

Queiramos ou não, é o tempo da força. Mais do que ideias luminosas, mais do que fórmulas inoxidáveis, é a hora da força. Força que vai muito além da física, da bala, do coturno e dos xingamentos: trata-se da capacidade de afetar corpos. Disputar pela força não significa ser fascista, nem tampouco “baixar o nível”. Ou, que seja, baixemos o nível. Baixemos sim, ali, no lugar onde estão se multiplicando os afetos fascistas e façamos multiplicar os afetos contrários. Força é apresentação, representação; é performance, é elegância, postura, gesto, é intensidade. É sedução, dança. É, inclusive, abrir a boca pra falar na hora certa, no momento preciso em que conquistamos a escuta, e aí, aplicar o ferrão. Como abelhas, inocularemos em seus corpos a verdade, mas antes precisamos pousar em suas peles.

É necessário despojar do desprezo e entrar no afeto do combate. Eles estão vindo com sangue nos olhos, fortes, apaixonados pela ideia da purificação, do patriarcado, da branquitude. Temos que os enfrentar olho no olho, com uma força equivalente, tão ou mais apaixonados, mas pela realidade da diferença, e o legado do feminismo e do antirracismo. Reconheçamos, nós e nossos representantes, a dimensão estética da política como parte da estratégia, e não como um registro de inferioridade. Estamos do lado da verdade? Ótimo! Usemos esse fato para nos imbuir do ânimo, de intensidade. Se nossos ideais são bons, eles com certeza podem nos encher de força.

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