17/04/21

“As Cidades Invisíveis” e um alívio no confinamento

 

Eu gostaria de agradecer esse livro por ter me salvado de pouquinho em pouquinho nessas últimas semanas. Porque as coisas que gosto são aquelas nas quais eu me demoro. Tive em mãos essa edição de 1990 da Companhia das letras — 150 páginas bem ralinhas. As Cidades Invisíveis são um livro bem enxuto, de modo que eu poderia ter lido em poucos dias. Mas isso teria sido imprudente. Emergindo dum mar de ansiedade pandêmica, surgia a necessidade de saborear com lentidão. Desde as primeiras páginas, já sentia que era preciso passear vagarosamente por cada uma das cidades-pensamento de Calvino. Como uma criança que, com o corpo, mastiga um lugar: ela brinca com cada elemento, de todos os jeitos possíveis, tecendo, gesto após gesto, uma duração. Pedaço por pedaço, ângulo por ângulo, uma demora. Tal é o tipo de transa que se tem com aquilo que se gosta.

Eu acredito que existam caminhões de críticas brilhantes e merecidas sobre esse livro, que revelem o manancial filosófico, arquitetônico, psicológico e semiótico que jaz sob suas páginas. E apostaria que, virtualmente, ainda há muito mais a ser desdobrado. Eu, no entanto, sinto o desejo de destacar seus méritos “baixos”. Chamar a atenção pra potência que esse livro tem de implantar em nós um cuidado erótico. De alterar nossa fisiologia e colocá-la sob o signo de uma “vontade de contrapoder”, para incitar Nietzsche. Operou-se no leitor uma sutil sabotagem que se traduziu em um fazer-querer ser vencido pelo texto, fazer-tornar-se recepção. Um encantamento, uma apresentação que desarma.

A composição extravagante que justapõe cidades-pensamento com incursões narrativas, nas quais um soberano e um sábio se interpenetram ao sabor do ópio, é sem dúvida uma construção hipnotizante. Mas tão estranha! Uma máquina tão singular quanto um relógio que faz o tempo sumir, contato que continuemos mirando seus ponteiros. Essa estranheza da disposição formal é tão penetrante, perturbadora e sedutora, que me faz pensar em alguns rituais animais de dança e cópula. Efetividade visual-formal que talvez se compare à poesia concreta ou ao teatro da crueldade de Artaud. Contudo, em forma de… prosa? E, imagina, toda essa gestualidade, essa festa dos sentidos, acontecendo num livro que é de fato um tanto cerebral. Mas, é assim mesmo. Nada menos do que um uso mágico da erudição. Calvino faz literatura com filosofia e faz filosofia com tijolos, barro, aço fundido, pedra-sabão, mármore, cimento e com toda a materialidade própria de um inesgotável vocabulário de engenharia arcaica e arquitetura. E o que é a arquitetura senão essa arte que faz desejar ser vencido? A manifestação técnica de uma busca peculiar pela liberdade, pois se dá por meio da delimitação do espaço e do tempo. Diria até: ergue-se o opaco para fender o horizonte em nossos corpos. Mas com um detalhe: tal agir é um silencioso agir-de-pedras, um ato solidificado que triunfa sutilmente, na medida em que não levanta a suspeita da coerção, do desrespeito e da dominação.

Nesse sentido, me deparei com a obra de um arquiteto da liberdade — o que talvez seja um paradoxo. Ao erguer paços, jardins, ruas, moradias, bairros e os mais variados sólidos do pensamento, Calvino me colocou pra caminhar. Uma verdadeira mobilização pelo amparo. Talvez seja esse aspecto do livro, propriamente arquitetônico, que me faz querer agradecê-lo. Ele tornou possível um hiato no meu confinamento, abriu um interstício na imobilidade, que eu podia aumentar indefinidamente, contanto que eu continuasse às voltas com cada cidade. E agora, ao terminar de lê-lo, percebo ter me esforçado, por puro desejo, para que o processo fosse o mais longo possível. Em meu corpo, sinto a satisfatória marca de um passeio, prolongado até o alívio da minha carência por encontros.

As Cidades Invisíveis abrem os portões de uma espécie de assentamento mágico, aos modos de um convite irresistível que provocou em mim o movimento de uma viagem indeterminada, em direção aos confins do pensamento. Não foi uma experiência intelectualista, pelo menos no sentido de uma tarefa sedentária e maçante. Meu pensamento se deparou com espaços arquitetônicos que só demandaram dele a atenção de um caminhar, e nada mais. Ao simples ato de atentar-se e prosseguir, meu pensamento aqueceu sua musculatura, fortaleceu suas articulações e sentiu o próprio esqueleto, enquanto se encantava com manifestações artísticas daquilo que o limita de fora. Cada uma das cidades de Calvino ergue uma aporia, fazendo o desconhecido se apresentar efetivamente, no ato de um contato físico do pensamento com o inconsciente. É por isso que, num momento em que estamos confinados ao que há de mais imóvel, reduzidos ao pragmatismo cotidiano da casa e do trabalho, esse livro aparece como um remédio. Ou melhor, como uma verdadeira prática de saúde mental.

15/04/21

que se abra

 



A cada quadrado no calendário
um bloco de cimento no sonho.
Conforme a geração se acaba
consumindo a si mesma,
nem mais em pensamento
se acessam utopias.
Não existe mais o fora,
não se está dentro de nada,
não há terra que se almeje;
o paraíso em nossas palmas
multiplica-se nos ares,
programando para sempre
os resquícios celestes.

A falta da imaginação
que engendrasse um bom viver,
a super vigília,
o ultrassonífero,
e o apagamento instantâneo
sob a luz do silício.

Inimigos vivendo encaixados
e impedidos de roçar
as vistas.
Militares ou militantes,
suas noites são a mesma
intranquila opacidade.
O horizonte se aproxima
junto às paredes do quarto
e a única saída é uma veia
que se abra.

Mas se ilude quem pensa
ser o cárcere maior
este corpo encarnado no cimento.
Nossa alma já não mais
encontrará refúgio.
E do lar primordial
só restarão relógios.

A única via é aquela
que ainda não existe,
mas que se indica
em algum lugar
da palavra barricada
ou aquela que se pensa ouvir cantar
quando o riso de um tambor
faz sair, por um momento,
do papelão um caracol.