26/01/20

do progresso

 26/01/2020

nos momentos em que me invade o espírito mais amorfo, me vejo desejando sombras gigantes.
nos momentos em que me sinto mais animal, vejo o ser humano por olhos sem íris.
nos momentos em que jogo a moral no lixo, eu quero ver a grande confusão.

Homem, você precisa deixar morrer seu homem. O largue ao sabor da própria gula. E que a fome instaurada no mundo se adense em seu corpo, ao que se devorará os próprios tecidos.

Vou lhe contar uma história. A história do progresso. Penso que se instituiu demasiadamente. E pouco se confiou no corpo. O caos não é mal, é apenas o caos.

Certamente não foi fácil para quem viu um relâmpago destruir seu lar, instantaneamente pulverizando todos os horizontes da vida. Um e logo Zero. 

O trauma: a experiência da máxima incerteza propagou-se nas pessoas ao longo de milênios. Assim, penso que a instituição é tão natural quanto o relâmpago. Precisamos de grandes máquinas impessoais para nos dar alguma garantia de que a vida amanhecerá amanhã.

 
Ainda mais traumático, no entanto, foi perceber o fogo dentro de si. A incerteza dentro de si. Abaixo da pele alguma coisa tão incontrolável quanto a morte. E assim, institui-se. Não para evitar algo do caos, mas para possibilitar esquecê-lo, ignorá-lo por algum tempo.

 
Mas essa não foi a grande audácia humana; não foi isso que fez nascer o homem demasiado homem. Ordenar nomes para os dias, falar de leis, criar consensos provisórios.. não foi essa a pretensão que nos lançou na virtualidade do fim em que nos encontramos hoje. A instituição foi um problema quando passou a se tornar um hábito. Instituir morais a priori se tornou tão frequente quanto defecar ou comer. Invocar leis eternas ou executar vidas na mesma frequência em que surgem as menores expressões do caos. E qual frequência será esta? Talvez algo tão rápido quanto a oscilação dos elétrons ao redor do núcleo.

 De que época estou falando? De nenhuma. Isto é um delírio. Acontece em um lugar muito mais real do que aqui.

Os úteros expressam o caos porque sangram incontrolavelmente. Não é do controle de ninguém, mesmo do corpo em que repousa. Mas o que expressa esse sangrar? Viver mortes  em vida refunda os ímpetos, redireciona as pulsões, ativa o desejo. Assim se dá também a todas as criaturas que, paralelamente à educação, recebem a pedagogia física do caos, desde o nascimento. Não é preciso ter o órgão para sentir que o próprio corpo é uma história. O útero é uma potência consistente, uma força, que muito bem poderia chamar-se Oceano.

 
Viver a morte exige muita força. Essa grande força, que é indomesticável, vinda do próprio corpo.  Aos olhos das que não a temem, o caos não é mal. O caos é apenas o caos. A dor é apenas a dor. E na vida há algo mais do que controlar ou ignorar os processos. É um mistério.

O homem faltoso, que tem nojo de útero e ódio do oceano, que não sangra sem que isso signifique martírio, finalmente institui o que faltava: a guerra ao mistério. Para isso, faz pré-existir Deus à sua imagem branca. Ou, quando a moda pede algo mais adulto - mas não menos branco - faz pré-existir a Razão. Lança mão de um fundamento imaterial, uma legitimação eterna. Dita que existe algo bom, essencialmente bom, mas que é transcendental à carne, ao sangue, ao pecado, à mulher. Enquanto os teólogos instituem um passado puro, os tecnólogos prometem a pureza no futuro. Indiferente. Pois ambos tornam-se arautos dessa mesma Lei e rondam a terra à procura do mesmo inimigo.

E o encontram. No escuro abaixo do viaduto, na falta de branquitude da pele, no estrangeiro sujo que chega de longe, no corpo desviante que confunde suas categorias... Encontra em todo lugar, na verdade. Encontra dentro de casa, dentro do armário, na rachadura que o pedreiro não evitou, na mancha que a "moça da limpeza" não consertou, no pelo que a esposa não depilou, no pênis que não sobe quando se ordenou... Enfim, já sabemos que o mistério é, como Deus, uma ubiquidade: está em tudo. Portanto, o homem institui uma guerra que é total. E assim, a máquina ocupa o lugar do relâmpago, pulverizando lares no intervalo de um tiro. Um e logo Zero.

Os combates são intermitentes, mas a Guerra é um acontecimento que não para de acontecer. Pensou-se que esse caráter contínuo da guerra tornasse ela uma ação suficiente para que o caos, não apenas esquecido, fosse extinto. Um extermínio institucional. O Progresso. Esta é a história que você precisa conhecer.


Umberto Boccioni, 1911


às vezes não me sinto gente. sou capaz de abrigar uma indiferença total com a espécie humana. sinto no sentido de que catástrofes me dariam muito prazer. a cidade em chamas destruindo de uma vez por todas a falsa promessa do progresso! mas não.. não posso imaginar demais... pois, se por um instante, no meio dessa massa humana, vejo um rosto.. ah! se eu vejo um rosto que seja, tudo se acaba! um rosto, uma pessoa... logo estou amando, inserido na trama a se destruir e, pior, morrendo frustrado. morrer com poças no peito, já que não há certeza de que, após o fogo, não se retomará a ordem, o estado de coisas, e ressurgirá, renovada, uma máquina ainda melhor. ainda pior: sem que nós estejamos aqui para denunciá-la. talvez essa seja a pior das mortes. e quantos, quantas já não morreram assim, aqui na Terra? 


Ora, homem! Você não precisa sangrar para sentir. Vamos lá, a situação não é assim tão irremediável. Atente-se. A pele do corpo, o que me diz dela? Um órgão ambíguo, que é tanto no sentido de delimitar quanto no sentido de deixar passar. Sinta. A pele é o signo da presença inelutável do mistério. Acredite, homem, até em ti o caos habita. E nunca foi possível detê-lo ou contorná-lo. Teu corpo, ele próprio é a prova de que a ordem coabita o caos até mesmo em teu peito forte, em teu crânio avantajado, até mesmo em teu pênis bélico, marcial.
Não acredita? Então lamba a espada e me diga: como é o gosto do metal? Sim: é difícil definir. Sente que sabe, mas não sabe o que sente!

Agora, lembre-se da experiência do relâmpago destruindo tudo que você conhece. Claro, dá muito medo. E este parece que não vai desaparecer tão cedo. Mas fosse essa memória profunda a prova de que não há possibilidade de vida com o caos, bem, então logo você teria que lançar seu corpo no magma. Seu corpo, feito de extensões. Certo. Volumes, vetores, tecidos e até, veja só, os diabólicos neurônios com suas vias elétricas indiscerníveis. Pequenos relâmpagos? Infinitos deles. Extensões são habitadas por intenções que a anatomia nem cogita. Então... é tarde demais para ter medo de viver?

o medo não é nunca de outra coisa que não de uma dor. não há limite para a dor. por mais que já tenha doído, existem sempre artérias menores e mais delicadas para se estourarem, existem sempre do outro lado da ponte os olhos do oprimido encharcados de sangue seco, a decair em proporção contrária a uma dor que só cresce e cresce e nem a morte dá fim

Bem se vê que o suicídio não vence a barreira do orgulho. Você, homem, continua aí, cotidiano, vivendo moralmente, desejando farmácias, se alimentando de pílulas. Os fármaco-aplicativos estão na palma da mão e você nem precisa pagar pela gasolina do entregador.

Em nome da civilização, por meio de uma tecnologia protética, você vai aumentando indefinidamente a sua capacidade de esquecer ou de ignorar. Ignorar o corpo, em primeiro lugar. Em segundo lugar, quem cuida do seu descuido com ele. Em outras palavras, você é um grande técnico em instituições, treinado por dois milênios para gradear, cercear e, enfim, ocultar a realidade do caos. Ou simplesmente canalizá-la em direção ao colo das operárias que você nunca viu o rosto. Mas esse mistério continua passando por você, secretamente, nas frestas. A parte de você que não é sua e nunca será. Você não é seu. Essa é a contradição da carne, a de ser marginal à consciência que a tenta possuir. Nem mesmo o nosso corpo é imediato.

Ah, mas você já até aprendeu alguns métodos para lidar com paradoxos como esse, não é mesmo? Armas de fogo, com sua eficiência instantânea; famílias, com sua mitologia positivada pela ciência.. Muitos métodos grandes e também pequenos, engendrados sobre o fundo falso dessa "razão humana". Variados, diversificados. Desde a instituição da igreja até a instituição do netflix. A sua normatização da hipocrisia deu lugar à naturalização do cinismo. Belo ser humano esse que se construiu! Bom... ele até pode ser belo. Mas nunca será tão belo quanto o Deus que o devora por dentro, tornando insuficiente toda a matéria prima e toda a extensão do globo. 

Como resolver esse problema, se o caos é coextensivo à vida? Realmente há um problema. No domingo vem a infame crise existencial e você pergunta aos céus: "Talvez falte mesmo transcender a carne. Como?" E a resposta cai do céus (ou seja, de todos os lados). 

Homem! Siga diligentemente estas instruções!


A solução para os seus problemas será, primeiramente, isolar do corpo a consciência pura. Então, acople essas informações em uma nave hermética, feita de luz. Em outras palavras, faça upload na nuvem de Noé. Finalmente, é só dizer adeus e viajar na fibra ótica universal. 

Percebe? Assim, vocês estarão livres do erro que a matéria traz consigo! Parece bom, não é? E é mesmo. Pode confiar. Vá. Deixe a carne para os "pobres", para as "mulheres"; transcenda a carne, deixe para trás as feridas, o sangue. Dissolva-se na sopa de fótons, junte-se a Deus no paraíso. Nos deixe. Deixe a Terra. Acelere o progresso ao infinito e viaje, homem, viaje para sempre, sem nunca mais errar, em direção ao seu tão desejado fim!


me vejo desejando sombras gigantes
vejo o ser humano por olhos sem íris
quero ver a grande, a maior, a derradeira confusão

15/01/20

bound to

15/01/2020

 aceito o céu como aceito um dado

mas acredito que escolhi
estar aqui porque louco
aceito
confesso a culpa
minha de ter nascido

e só

não há mais culpa
todo o resto é risco
e a memória vive
cedendo

aceito o céu como aceito a gravidade
aprendemos desde o começo

fui pego pelo bonde caindo
lembro-me com força
desse veículo longo
                              extenso
                              até hoje

na queda
apanhei estranhos
caroneiros marujas
parasitas paradisíacos
me apanharam em banheiros sujos como a Terra

e por pouco não me devoram
e hoje são meus amigos

na queda,
eu os aceito
eles os pesadelos
elas a poeira colorida
e nós
que me dominam
desde a pele até o quê
se não temos fins?