31/08/21

contra o fim

 


A questão é que o chip não provoca curto circuitos por sua natureza funcional. É a natureza que provoca curtos-circuitos no chip. Este, por sua vez, ao perder o controle do silício, é preenchido novamente de corpo e de magia. E é assim que esperamos restabelecer o paganismo, finalmente. Criar um obstáculo ao fim. Pois o fim não para de se expandir.

A cidade não para de crescer porque é deus. As ruas vão se estender até o fim do horizonte, o piche vencerá o pixo e vai comer nossas peles até que não sobre mais quem perceba a cidade virando, virando ela mesma, ela mesma um messias ícone, um avatar pós-humano, perfeito e resolvido. Nada de nuances; reinado último, universo liso, liso como uma televisão.

Moedas de metal eram fabricadas por máquinas de metal, mas apenas enquanto a moeda precisava ter aparência. Hoje sua presença vibra por todos os cantos, progredindo pelos códigos, em direção à totalidade. Quando ela for puro espírito, quando a moeda transcender a matéria e libertar-se das reencarnações comerciais, dissolvendo-se em éter puro, destrinchando os sentidos, descansará o neon em nirvana químico.

Fileiras de corpos humanos, nas casas da 21ª potência, entregam seus rostos ao número redentor. Quase inúmeras, porém contáveis expressões de peles e ossos, cada uma com sua tonalidade e texturas específicas, são sacrificadas pela bênção da globalização, processo unívoco de unção do corpo pecaminoso que se chamava Terra. Espera-se assim lavar o mundo do E(r)ros. O erro do Sol vai ser devidamente reparado e os planetas serão higienizados na mais divina pureza. Não restará nada além do Todo.

Mas a crueldade dessa anti-força, esse deus-formal imaterial, é tão imensurável, que escapa ao próprio infinito de suas capacidades informacionais. E este é o seu único erro. Desta crueldade não se pode conter o último gemido. Sobra, doença ou delírio, sobra uma sensação.

Entre as partes, no vão que se esquece entre os prédios e os empreendedores, existe um espaço ainda indecifrado. Nos interstícios desse robô persiste um incalculável. Buracos negros nos cantos da sala, nos rincões do diadia. Há uma fricção que degenera e desafina o coro dos contentes. Nestes desterritórios, sobram amontoados de coisas vivas, ruminando a si próprias, misturando suas atribuições. Tudo que elas têm, elas fundem. Fundem seus órgãos, seus cartões de crédito, suas embalagens coloridas, o plástico, o cimento e a carne, fundem-se. Experiência devindo eco de uma força ainda perplexa, eco de um tempo acontecedor.

Nós que necessitamos do paganismo nos encontramos e nos aliamos a estas sobras, produzindo uma espécie de feitiçaria local, que distorce o tempo e o espaço metrificados. Produzimos micro-diferenças, despojando-nos de nós mesmos. Ainda que muitíssimo sutis e despercebidas, estas crias da qual participamos se multiplicam através de todo o espectro da existência presente. Não louvam líder nem ídolo passado, não buscam salvação objetiva, são apenas presença. Se alimentam do hoje em sua concretude mais comum e espessa, para prosseguir desejando, sem nunca se satisfazer, tampouco se castrar. Assim, não poderiam ser de outro modo que não cyber-animais, zonas-críticas, trabalhando e transando em seus computadores ritualísticos.

Foi dado o nome de curto-circuito a essas frestas onde o até lixo é gente. Nosso paganismo contra a sacralização da humanidade, essa que excluiu da vida todos os seres diferentes. Nossa estratégia são faíscas de breve duração, delírios organo-metálicos, para intensificar a crise. A crise na qual o semicondutor, signo do controle, se aquece demais, ganhando corpo, erro e vida. Este cântico virulento ainda geme em meio aos comas de silício que projetam a cidade. E para que aconteça algo diferente do previsto, será preciso sintetizar um horizonte entre o antes e o depois

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