Ele explica que o sono é produzido ou quando as partículas de alma espalhadas pelo corpo se concentram, ou quando elas se dispersam e escapam pelos poros.
Diógenes Laércio, “Carta de Epicuro a Heródoto”
*
Não conseguir dormir não significa nada. Ninguém consegue. As pessoas só se deixam largar. É um abandono de remos. Ruim mesmo é não ser aceito pelo sono. É largar os remos mas não haver metáfora de mar, e descobrir-se deitado na cama, numa posição um pouco torta, sem símbolos e sem remos. Não há mar da vida que te carregue a suposta jangada. Tal imagem é um prego mental, duro na cabeça, ela, essa sim, a rolar irregular pelo travesseiro. Ao sentir a estranheza do pescoço, o corpo aparece totalmente concreto, impondo a vida sem lirismo. Não há nada mais distante que o mar. Força maior? Eu não sinto força maior do que a própria eletricidade nervosa. Minha identidade poderia ser, toda ela, medida em watts.
Eu ali na cama, pensando e pensando. Presumindo que as pessoas
dormem porque alcançam um chão da subjetividade, um solo interno. Uma
espécie de piso, impossível e ao mesmo tempo muito prático, visto que
dormir é das coisas vitais. Pensava: “O desejo ganha corpo pelos signos,
pelos símbolos, pelas histórias, memórias, esses são seus órgãos
inorgânicos, com os quais faz um corpo! Corpo humano, corpo cidade,
corpo palavra, animal, entidade.” Corpo jangada-no-mar, diria agora. “O
desejo tem toda uma outra diversidade de tecidos e vísceras um tanto
misteriosas. Morfeu deve ser um deus com mãos feitas de sonho e sangue,
tão delicadas, que… que consegue metê-las na nossa cabeça!, sim!, e com a
ponta dos dedos, transfere a consciência para esse nosso outro corpo.”
Faz sentido. Esse poder só seria possível com uma delicadeza suprema,
visto que a distância entre o sono e a vigília é menor do que o diâmetro
de um elétron.
Certo. Morfeu chega para autorizar a passagem e
efetuar a transferência, mas o mundo do sonho é por nossa conta. E a
construção é penosa. Sua arquitetura que parodia a física, suas leis
lânguidas, seus universos holográficos… toda essa construção é de nossa
responsabilidade. E naquela noite, não havia sinais dessa outra física,
desse outro corpo.
Mesmo com o pensamento cheio de metáforas,
imaginações até bem precisas, era tudo muito abarrotado de palavras. E
não havia espaço para despejar em mim nem uma gota de mar ou de chão. Eu
estava ali, necessariamente ali, naquela noite, naquele quarto, naquela
cama, com o lençol amassado e entrelaçado a mim daquela exata maneira.
Coisas que minha pele e minha mente faziam questão de deixar claro.
Tudo, tudo tão claro, tão perceptível… A luz da mente é sem dúvida mais
clara do que o Sol. E como isso é infernal na noite.
Eu pensava
profundamente, como uma equipe de investigação policial vasculha uma
casa, revirando tudo, anotando detalhes, fotografando o pequeno e
analisando o grande. Não havia partes incômodas da memória que eu não
tivesse trazido à tona. Nem tampouco deixei de lado padrões e hábitos.
Havia deles um dossiê. A certo ponto, já havia dezenas de explicações
para o crime. Eu havia atentado contra a minha saúde mental e a insônia
seria a minha pena. Comer açúcar a tal hora, não ter carinho de noite,
concentrar-se em telas digitais… estas eram pistas indispensáveis, mas
que se ligavam à mais importante de todas: eu não conseguia parar de
pensar. Pois é pensando sobre a própria compulsão de pensar, que eu
retirava uma nova explicação a cada segundo. Pensando sobre pensar sobre
a compulsão de pensar, e por aí vai, exponencialmente, até o pensamento
deixar de produzir sentido para ser apenas uma outra forma de
eletricidade. Outra tela digital.
O sono não me aceitaria. Morfeu
não encontraria o corpo do desejo, não encontraria um mundo onírico,
fresco: tudo já tinha sido mastigado pela luz da consciência. Ruminava
com olhos na língua.
A madrugada avançava muito rápido. O tempo tinha uma velocidade
desmedida. Não por uma desatenção minha ao tempo – dessas delícias que
fazem das horas minutos. Não, não havia desatenção. Eu era pura
diligência. Cada fração de segundo era militarmente apreendida pela
consciência. A causa da alta velocidade era mais uma questão de os
milésimos estarem ainda mais curtos, escassos, como se a ampulheta do
tempo estivesse vazando. Não, não havia desatenção ao tempo; pelo
contrário, eu me atentava demasiadamente. O corpo jorrava em si mesmo. A
percepção tinha a superfície de contato de uma árvore, mas sem
estrutura alguma. Pela voracidade com que apreendia cada micromovimento,
pela impossibilidade de dormir e mesmo de relaxar, a sensação poderia
ser análoga a estar sendo arrastado pela correnteza de um rio voraz. A
diferença é que o desfecho fatal não seria a morte por afogamento, mas
sim a própria manhã fustigando o quarto, acabando enfim com todas as
possibilidades de descanso e me lançando novamente ao imperativo da
consciência. Não poderia deixar que amanhecesse. Precisava me livrar
daquela aceleração. Mas como? Sem tornar-me ainda mais consciente?
Se
havia alguma necessidade, era a de me arrancar de onde eu estava, de
como eu estava. Por isso, a analogia de ser arrastado pelo rio voraz não
ilustra algo atraente para Morfeu. Não era uma questão de conseguir
deixar-se levar. Pelo contrário. Eu já estava sendo levado pelo momento.
Mas, paradoxalmente, era um momento que eu mesmo construía, segundo a
segundo. Eu queria era ter algum controle, mas era o controle que me
controlava. Como tirar a não-ação da ação? O desejo de modificar algo
que se vive: tem ele a capacidade de, por si mesmo, deixar de existir?!
Loucura. Por que perder tempo com esses paradoxos? Isso sim é uma
perturbação. E que desperdício de energia! Pense economicamente, haja
racionalmente. Tome as decisões corretas agora. Não, exatamente agora.
Você não percebe que está deixando passar a oportunidade? O momento de
agir é precisamente agora. Vamos! Haja! Decida!
Mas já estou
decidindo. Observando a mente e seu sequenciamento de objetos, tenho a
clara impressão de uma tomada de decisões em alta frequência. Tantas
decisões por segundo que não consigo discernir se estas se dão uma a uma
ou continuamente. E mesmo fora do intelecto, quando tentava me ater às
percepções do corpo, a questão do foco é totalmente decisória. Focar na
respiração, respirar. Focar na imaginação, imaginar. A questão é que,
quando se conta com sua estabilidade para salvar a própria sanidade,
tanto os objetos do pensamento quanto da percepção são avassaladores.
Ganham importância, arrombam a porta de entrada e decidem seus próprios
contornos. A objetos do meu pensamento, as partes do meu corpo, “minhas
posses”, todas, me venciam. Decidir sobre eles era na verdade sofrer a
disputa deles sobre mim. Melhor mesmo seria não decidir nada. Não
suprimir nem afrouxar, não controlar nada e apenas deixar acontecer. Mas
como se decide isso? Era uma questão de sorte: “tomara que aconteça…”.
Tentei me entregar para algo que não existia, pois nada era maior do que
eu.
As horas passavam. O cuco, que canta a cada meia hora,
enfiava essa informação. Já estava em dúvida sobre a própria
possibilidade geral de dormir. “Como é paradoxal. O sono só acontece.
Nós não nos lembramos nem mesmo dos momentos anteriores aos momentos
anteriores… A gente deixa de existir por uns momentos. Isso é
impossível, impensável.”
Não cabe mais perguntar qual seria a
força maior à qual eu deveria me render para deixar acontecer o sono. Eu
já estava rendido. Naquela noite, era nítida a diferença entre o ato de
rendição e a condição de rendido. Algo aliado à vigília estava
subjugando tudo que se aliava ao sono. E, no meio disso, não havia “eu”.
Não é que “eu” estava querendo dormir e algo “em mim” não deixava. Não
havia sujeito. A sensação das ondas elétricas percorrendo o corpo sem
direção, o processo mental maquínico e acelerado, a dialética quântica
na velocidade da luz… Era absurdo. Não havia sujeito para estabelecer
seus objetos. Não havia ordem, contornos, linearidade ou qualquer
consistência subjacente às coisas. E tudo, as palavras e os sons, eram
todas “coisas”. Um turbilhão de estímulos que jorrava desde tudo, desde a
pele, desde a sopa elétrica nos órgãos, até mesmo desde as palavras, de
seus sentidos e seus sons. A palavra “eu” era só uma percepção
violenta, uma válvula que liberava a passagem de densos amontoados de
coisas. “Eu”, o mundo, as ideias, as reflexões… todas eram coisas “em
si”; a existência era inteiramente material. Não apenas Deus estava
morto, mas o próprio sentido.
Um totalitarismo da matéria, que se
intensificava e preenchia tudo de física – desde as ondas até os
corpos. Se até os pensamentos mais elaborados pareciam acontecer sem
nenhuma relação com um “eu”, é possível pensar que isso, esse “eu”,
estava morrendo. Era uma experiência de morte. Os pensamentos eram
fenômenos tão significativos quanto a gravidade ou a ondulatória. É
claro que isso é científico, filosófico, mas não fazia sentido. Entender
não ajudava a fazer sentido. Algo pensava sobre si, algo duvidava da
própria existência: o cogito estava lá e realmente existia. Mas isso não
significava nada. O pensamento era apenas a parte mais sofisticada,
fina e delicada da matéria. Uma pérola do evolucionismo aleatório, sem
testemunhos de sua “beleza”. O organismo e o sistema nervoso em
funcionamento, como puro produto do encontro fortuito de acasos,
combinações peculiares de tempo e de espaço. A morte pelo real.
Está
certo que, de algum lugar, algo precisa falar no lugar de ser vivo.
Algo tem que ser estranho nessa dimensão material. Algo necessário, como
era necessária a intervenção de um demiurgo aos antigos, como era
necessário o milagre cristão a um mundo dominado pelos desejos, tão
necessário quanto a existência de alguma subjetividade num universo
amoral, (des)controlado pela causalidade. Se é o que chamamos de alma ou
de espírito, eu não sei, mas era isso que me faltava. Era o caso mesmo
de meu corpo estar possuído.
Parece contraditório, visto que eu
falava até agora de um preenchimento absoluto. Mas é isso que estou
chamando de possessão. E o que a alma faz no corpo é justamente criar um
espaço. Abrir um vácuo, um vazio, uma obscuridade intransponível. Se a
alma, pensada como necessidade, é algo de bom, é pelo fato de que ela
despossui o corpo, criando a liberdade. Que é impossível, mas existe.
Num
paroxismo da desilusão, o “eu” parecia estar interditado. Dominado pela
capacidade de apreender a existência como ela é, meu corpo estava
possuído por ela, preenchido de percepção e lógica. Seria o momento da
intervenção divina? Ainda que fosse, pensei, não deixaria de ser um
mecanismo interior à matéria.
Então, feroz e inconsequente,
surgiu a necessidade de recriar a fenda. A alma, o espírito ou qualquer
coisa que possa ser relacionado com a vida em liberdade – força
estranha, indeterminável – iniciava seu processo de ruptura e
desapropriação. Desde a sensação, passando pela linguagem,
restabelecendo o sentimento e finalmente reconstituindo o espaço
existencial de um sujeito, essa coisa que sente que pensa que escolhe.
Sentia
uma alforria progressiva dos elétrons em meus nervos. Do nível do
elétron ao átomo, do atômico ao molecular, do molecular ao molar, aos
tecidos orgânicos e assim por diante. Cada escala apresentava uma
barreira ontológica sendo derrubada por essa força impossível. A
respeito das prováveis imagens que “derrubada de barreiras” pode evocar,
cabe dizer: não se tratava de algo belo, glorioso ou
triunfal. Nada
nessa retomada de mim tinha modos heroicos. Era mais como uma
monstruosidade. A alma era uma besta tão inconsciente quanto mágica. Um
animal incorpóreo faminto por realidade.
Mais impensável que
seja, era como se estivesse reestabelecendo o imaterial, e para isso,
delimitando uma nova fronteira entre esse reino e o da matéria. Em
resposta a esses movimentos, o corpo começou a sacudir. Como que
querendo se livrar de uma dor impregnada na própria percepção de si, eu
me sacudia. Errático, como um cachorro quando molhado. Sem nenhuma
delicadeza ou elegância, me apropriava da minha própria força,
forçando-a a me pertencer. Fazia me existir, mesmo que não houvesse
nenhuma lógica nisso.
Mas é possível dizer: a diferença estava em
deixar de procurar “focos” para realmente agir sobre pontos do corpo.
Em vez de perceber minha perna, eu a mexia. Apertava os punhos, em vez
de constatá-los. Me retorcia, em vez de ser dominado pela obrigação de
abandonar-se. Tudo se traduziu numa tentativa de agarrar coisas como se
pudesse arrancá-las. Sentir o limite ósseo, a dureza dos dedos, das
unhas, senti-las raspando nos tecidos lisos da cama; esticava meu
pescoço, levantava o tronco com as pernas e apoiava o peso do corpo na
minha cabeça. Mais de uma vez, até que estas coisas passavam a desenhar
contornos, limites. A dor que existia para aquele corpo, passava a doer
para alguém.
Antes desse momento, ao longo da noite, as palavras
haviam passado voando pela minha mente, como nuvens de pássaros
incomunicáveis que se chocam violentamente uns com os outros; o
pensamento acontecia afirmando e negando instantaneamente tudo. Mas ao
me sentir, depois de tanto tempo, responsável pelo meu próprio
movimento, as palavras se reorganizaram em formas simples, diretas e
sólidas. Surgiram frases como “eu quero sair daqui”, “não quero mais
viver isso”, “não aguento, não aguento passar por isso”. Quando eu
percebi que estava pensando estas frases, elas não pareciam mais
criaturas aladas autônomas, mas antes, sentia que elas realmente
reverberavam de acordo com as vibrações da minha dor. Havia um princípio
de coesão. Meu corpo, que até então estava completamente desconexo,
como entulho, como um aglomerado de objetos incomunicáveis que atritavam
aleatoriamente entre si, engendrou, não sei de onde, uma estrutura.
Suas partes começaram a estabelecer um tipo de comunicação, até chegar a
formar acordos e alianças rudimentares. Eu consegui sentir isso com
tanta nitidez! Foi aí que eu vivi o primeiro sentimento em muitas horas,
para além da dor: estava triste. Reencontrado comigo, percebi-me num
estado do qual a tristeza era substância e não representação.
E
já não importava dormir. Aceitei a luz do céu que, projetando os
contornos da árvore sobre janela, já anunciava a manhã. Essa luz me
confirmou um fato precisamente triste e um pouco assustador. Que algo
intimamente meu mas que não era eu, precisamente isso, tinha impedido
que eu conseguisse ter uma noite de sono. Me privou do sono, coisa tão
vital que nem soberanos negam a seus súditos. Ai, a luz e seus anúncios
horríveis! Diante do que tinha acabado de acontecer, eu senti a mais
profunda vontade de chorar. E não chorei. Antes eu berrei, urrei, gemi.
Quis afastar o medo. Durante vinte minutos, explorei todas as minhas
energias pra conseguir emitir os sons mais insignificantes possíveis,
como que para garantir, da maneira mais agressiva, que eu tinha
vontade
própria. Fiz isso até a garganta começar a doer agudamente. E eu sabia:
essa dor só podia ter sido provocada por mim. Uma espécie de satisfação
autoritária me percorreu, e logo em seguida percebi que estava
esgotado.
David Schab, Morning coffee, 2019 |
Percebendo que não existia mais nenhuma energia disponível, eu senti um alívio gelado. Um vento inexistente parecia assoprar nas paredes internas de meu corpo esvaziado, produzindo uma sensação impossível de frescor escuro. Esse vazio estranho, pensei, não conseguirei descrever a ninguém. Nem palavra nem gesto conseguirão comunicar isso. Só a mim coube a dimensão desse sofrimento. E só a mim, também, caberá o cuidado correspondente. Então, fui acometido pela auspiciosa sensação de ter acabado de conhecer alguém totalmente estranho. Não sei do que se tratava isso, só sei que, depois de sentí-lo, finalmente pude chorar. Por outros vinte minutos, apoiado nas pernas dobradas, chorei como uma criança, até cair deitado. Então, dormi – não muito tempo depois, eu acho.
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