04/08/21

rostos e outros brinquedos

 

Quem me dá resposta?
Quem me dá um ouvido?
Quem me dá um rosto
que se afeta ao ter
outro rosto em frente
que se afeta ao ser,
simplesmente?

Que se afeta ao ser?



Como é bom saber que nos tempos idos de escola, face às regras da aula, escolhia conversar e aguentar as broncas.

Se naquele tempo já soubesse de hoje, em que as regras são ainda mais, as broncas são ainda mais ameaçadoras e não há ninguém ao lado para conversar, teria desobedecido ainda mais.

Não quero, infantilmente não quero viver num mundo em que não haja rostos e essa coisa que eles têm quando são de outras pessoas presentes na presença de outros rostos. Nenhuma hiper otimização da inteligência artificial vai realizar o mesmo. Não vai porque nós não temos a capacidade de reproduzir o erro. Há uma parte da perfeição que é o erro. Há uma parte da vida que é o erro. Que é o equívoco, o atrito, a diferença mínima e real entre o coração de uma mãe e o mesmo órgão na sua criança. Não conseguiremos fazer um artifício do que não é do campo do conseguir. Quando projetamos um mecanismo, já estamos nos privando do desconhecer. Ao projetar, já tomamos a via do acerto e nos despojamos dos frutos daninhos. O erro é algo que queremos, que desejamos muito, mas que não podemos entender. Ao dar um nome ao objeto de desejo, já estamos nos proibindo.

Quero sim encarar o desafio cósmico do amadurecimento, quero sim viver a experiência do social, do projetar algo, do devir adulto. Quero sim que haja regras com as quais temos que lidar, que haja normas, que se viabilize uma construção de um bem maior. Mesmo que isso, no fundo, não tenha um sentido. Quero, sim!, ainda mais! Meu desejo infantil não é a desobediência em si mesma, porque essa depende da existência a obediência. Que haja autoridades, que haja um grande propósito. Eu só não quero embarcar nessa empreitada sozinho. Trilhar esse propósito humano sem poder, ao sentir o seu vazio, desviar minha atenção e inventar um propósito que vai na direção mais nublada, mais opaca, que é o mistério patente no rosto, no corpo do outro, próximo ao meu. Quero poder apresentar a minha dúvida, a minha confusão, o meu desencaixe. Apresentar! Trata-se de tornar presente algo para alguém que também se encontra presente. Não, por mais que a velocidade da luz pareça infinita, ela não é. Por mais que a internet represente meu rosto na tela do outro na mais ótima velocidade… eu… eu não sei. Talvez esteja querendo demais. Pedindo demais. É possível que eu esteja dando ares de grandeza a um derrisório sonho infantil de voltar ao passado melhor. A mais velha história do mais velho gênio.

E a apatia volta a tomar conta de mim. O futuro volta a me vigiar, dizendo, ditando que a matéria bruta do tempo deve ser processada de acordo com sua mais perfeita forma. Não posso perder tempo com infâncias, com quereres, saudosismos da desobediência. Eu li que os tempos da disciplina acabaram e que estamos na era do controle. Estes filósofos e seus diagnósticos pervasivos, sutis, ardilosos! Aos poucos tudo vai, impiedosamente, se confirmando. Não há mais alguns tipos de existência, meu rapaz. O mundo acabou, já, diversas vezes. Vai, organize esse texto, revise segundo a gramática, a formatação, as palavras-chaves; revise-o com vistas ao público alvo e poste nas redes. Veja: que se você não tem mais a presença viçosa dos seus rostos, agora você tem a conectividade incontável, o acesso virtual a tudo e todos. É um belo de um lanchinho pra alma não? É, sim. Uma ração razoável. E a hora do recreio acabou. Volte ao trabalho.

E enquanto eu produzo o meu futuro, enquanto produzo o futuro da humanidade, eu penso que algo da nossa dignidade está sendo sacrificado para sempre. Que a vida está perdendo espaço no universo. Que algo absolutamente indiferente a nós, triunfa.

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