07/12/21

eu, pequeno burguês

 Reedição de um poema de 2018


Fumadora de ópio, Fernand Cormon
 

 

a questão toda da sua vida toda ser apenas um universo infinito de demolições
ou ser uma raspa de tijolo quente como a baba de um sol convulsionando
na sala de estar

nascemos pra trair o bom nascimento

então a única maneira de fazer do jeito certo é se lançar pra fora cada vez mais pra fora e estabelecer contato com os dentes dos ratos e lembrar de todo o horror e
se culpar e queimar junto com a culpa de tudo
até não existir mais como pensar em voltar a sentir saudades da infância

com toda essa discussão silenciosa, a micro política a macro política...
qual é a ponte entre as duas ?
cadê a possibilidade de ação ?

o outro é sempre o pior, o fascista, o reaça, o ignorante, o bolsonaro, o "aquele", o "eu" que represento, minha identidade top
ah mas que droga. deveria fazer algo com a minha vida já que
teoricamente tenho todas as armas teóricas na mão.. o chumbo logo apodrece,
logo vai espalhar suas toxinas opressivas no ar ao meu redor. é preciso agir.
vamos logo às pesquisas, fazer trabalho científico, produzir conhecimento
vamos logo às bases, conversar ouvir entender mudar de hábitos
vamos, rápido, pras barricadas trincheiras piquetes explodir bancos
vamos eleger presidentes estudados e representativos de minorias
vamos seu inútil
mas
afinal,
se eu não tenho nem vontade de
parar de comer pacotes inteiros de bis depois do almoço
dormir mais cedo, dormir melhor, dormir de fato
cuidar de um corpo próximo como o "meu" próprio
realizar metade dos projetos que minha mente produz incessantemente
produzindo ideias, planos, planos perfeitos
se às vezes não tenho nem vontade de querer
parar de sofrer
nem dar a cara a bater
implacavelmente rendido à condição factual de ser uma mediocridade definitiva
como posso, ainda, me relacionar como humano?
é possível chegar na conclusão mais nefasta sobre mim mesmo
é possível, é fácil, é
normal até
o mundo parece uma mãe cujo rosto envergonhado vai pairar sobre minha pele
até o fogo da próxima morte


e então acordarei novamente, repetido, suficientemente esquecido,
e vou pegar o busão,
com uma poça a mais no peito

Nenhum comentário:

Postar um comentário