29/09/2019
Para o filme “Roma” (Alfonso Cuarón, 2018)
Quem cria quem? Existe algo como alguém que nasce e faz nascer. Nesse
espaço que se abre, existem olhos e espíritos. As mãos e o cuidado se
originam e se encerram na mesma Terra, num outro Tempo.
O pensamento da Terra pensa ao ponto de não existirem almas. Não. Ao
corpo que se conhece, não sobra tempo para almas. Por isso os fantasmas, estes obsessores.
Sob a superfície, fantasmas lutando para emergir, lutando em nossas
gargantas modernas para fazer voltar o tempo. Acotovelam-se pelas vias
expressivas tentando fazer reviver memórias de bom e mal. Gemidos mudos de angústia, de moralidades e de essências, uma fauna de fantasmas.
Toda uma convulsão. Diversidade de mortes.
Mas os fantasmas não chegam a existir. São apenas ânsia de vômito, pura projeção que se engendra num ventre doente e cerebral; na dor, na suspensão abismal que emerge como refúgio no cume violento dos momentos, por um instante, para então voltarem a nada, instantaneamente. E nunca os vimos! Não nascem, não morrem, apenas furtam a vida de si mesma. São medo. São medo!
Os fantasmas das pessoas, dos animais, das
coisas da Terra, enfim, as faltas de pátria, os projetos de pátria. As
promessas de pátria. Já não fossem suficientemente insalubres, enquanto
estátuas de inexistência, esses fantasmas ainda são tristes, frustrados.
Nunca chegarão a tocar, a cheirar o molhado da rua suja ou limpa da
terra. Não tem línguas para sentir o que se movimenta sobre as peles e
as crostas, nem mesmo tem voz para indulgenciar a consciência. São apenas
palavras em anestesia, linguagem revolvida, convulsionante.
Enfim, não. Aqui e em qualquer realidade, exprime-se tudo, expressa-se, e
a única coisa que falta, mesmo, é o valor dos fantasmas. Aqui, eles não
se consagram nem se transam. Aqui não se consagram templos
burocráticos, construídas a partir do anti-material humano.
Aqui e agora passam ondas, montanhas, frutos de existência. Concreto,
abstração, problemática. Aqui é duro-mole, é fato-ficção,
fricção-deslize. Aqui é a situação das mulheres, a desventura das
mulheres e dos chamados homens. É o concreto e não se entende ainda o
que é. Não se sabe muito, perto do que se apresenta nessa quimérica demonstração de realidade.
Cidades-família, Estados particulares, casas-grandes famintas viciadas
em obsessão em devoração das forças, empalhadoras dos bichos vivos.
Quimera: aqui e agora as pessoas-mesa, os cantos de sala sociais,
sujeira poética, potência mortal administrada pelas empresas da ordem e
do progresso. É isso que se passa, é isso que se dá à existência. Aqui e
agora: a Guerra sã! Guerra querida, odiada! Máquina desejante! Força
das tempestades de carne e metal, onde as nuvens de cinzas se encontram
concebendo raios de cor! É aqui e agora!
Ei! Você me ouve? Por favor, me ouça. Estou pedindo com todo o amor que não conheço.
Por favor! Peço-te: não se esqueça. Não fique aí, se esquecendo. Você se
larga e se esquece continuamente. Rotineiramente. O metódico protocolar
cassado do despachado catálogo. O semanal, a organização, o fármaco
injetado nas veias, nas avenidas em coma, mantida por aparelhos
celulares. É o que fazes. Fica se esvaziando em universos paralelos
particulares, em nomes maternos, faltando e amando e apaixonando úteros protéticos. É medonho! Parece que você tenta alcançar a artificialidade
máxima - a pureza - que, ironicamente, nunca existiu, assim como você.
Então, eis a minha atitude: não mais te desejarei. Hoje eu fico louco,
hoje eu te acuso! Tu inventas e reinventas, em forma de violência, a dor
extrema de quem foi arrancado da plenitude ctônica.
Você é Deus. Mas está ficando Sozinho, frígido. Porque
esquece cotidianamente que quem criou a vossa mercê foi o Barro.
Então eu te pergunto: quem cria quem?
O céu está pálido. Você não me
responde e também nem chega a se afetar. É porque te
abandonaram a coragem e a inocência de criança. É porque o corpo nunca
te tocou. Agora estás aí, estátua, sem mármore, liso como uma idéia,
cheio de si. Residente, corrigido, certificado e significado.
Contudo, ainda alguém respira. A esperança é de qualquer coloração e
mais. Vai até as frequências do imperceptível, perturba até a
transparência em que repousam os fantasmas. A esperança, a fertilidade indomesticável, essa ventania viçosa de montanhas e vielas e casas abandonadas. Essa força respira (-se) e
resiste e contesta a estrutura. Corrói qualquer contorno, qualquer
documento, taxa, medição, código... corrói até mesmo a invisibilidade que sobre ela tentam projetar. Mais do que isso, ainda mais absurdo, ainda mais mágico,
ainda mais extraordinário do que isso: ela te perdoa. E te ensina.
Vai
ver você foi apenas um excesso de arquitetura... Quem
sabe? Quem sabe não fostes algo, quem sabe até tenhas existido! Não se
saberá. E o não-saber é natural, porque é fértil. Fértil e forte.
Ouço uivos de loba. Canina é a presença das matas e dos morros, ao criar tudo que inspira, acolhendo, de coração selvagem, até mesmo a doença abissal! Até o ingrato fantasma, vai ter uma nova oportunidade. Ainda que a eternidade
se excremente completamente através da cloaca cósmica, ainda que o tempo
se canse e hiberne, ainda assim terás, ó Ausência, a próxima
chance para nascer, comer e brincar. Ainda poderás devir loba, viver a
terra e morrer no espírito.
Nos encontraremos. Aqui, na corrente da consistência e da continuidade aberrante. Verás então que tudo - as mãos, o cuidado e o carinho - germina e encerra seus ciclos na mesma Terra, em outro Tempo. Porque, afinal, é assim que eu posso falar de você. Só assim, havendo uma nesga de existência, podemos nos referir a você que é dor secular! Que é doença infernal! Pois apenas sendo também teus filhos e tuas filhas, apenas sendo também tua cria, só assim nós podemos nos voltar para ti e, em gesto de grande generosidade, te matar.
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