Começo de 2019
A natureza de um ídolo é a traição. Qualquer ídolo que você pense ou
queira torná-lo assim, um ídolo, ele irá te trair. Apenas deve-se
esperar o tempo necessário. Entenda: não porque é um mau ídolo. Aliás,
fosse um mau ídolo, o processo todo seria mais fácil. Mas não é isso.
Justamente os grandes ídolos, os que tem maior densidade da substância
de ídolo, são os que estão inclinados a realizar a maior traição aos
seus idólatras.
Quem, o que são ídolos? Homens, mulheres, mitos e semideuses, todos com seus grandes atos. Todos tem sua assinatura gravada
na ressonância do tempo. É isso, certo? Seja por causa de uma ação
revolucionária, seja porque realizaram magníficas obras artísticas, seja
porque conseguem balancear uma dieta impecável com a manutenção de um
brilho divino no cabelo e ainda sair sem cara feia nas mil fotos. O que
os ídolos tem em comum, além e antes de serem traidores, é porque são a
expressão de um valor fixado nas bases de culturas ocidentais, sem o
qual uma subjetividade a ela aderida, colapsa. É o valor do
livre-arbítrio construído, a conquista da liberdade, a virtude heroica.
Ídolos por vencerem as dificuldades impostas pela matéria bruta,
triunfarem sobre
uma pré-concebida selvageria natural do mundo e assim propagarem algo
de (supostamente) essencial da presença humana na Terra. Os ídolos são
aqueles que sintetizam uma idéia de livre-arbítrio e sempre estão
atrelados a realização de algo difícil.
Precisamos deles para manter-nos dentro da nossa visão de humanidade.
São aqueles que, à partir de suas forças próprias, de sua virtude
própria, seja essa uma virtude intelectual ou física, enfim, à partir de
sua propriedade individual, realizam um ato que transforma o mundo todo,
ou pelo menos a parte do mundo que importa para quem o idolatra. São as provas cabais do sucesso humano. Mas como podemos sustentá-los
assim? Do que são feitos? São de carne ou de mármore?
Depende. Existem aqueles ídolos do atletismo, cujo esforço, disciplina e
cuja beleza de tentos nos faz renovar a crença na capacidade de
realização humana. Outro exemplo, e talvez o mais comum, é do ídolo
exemplo-de-vida. Geralmente alguém que começou no antro da brutalidade
material - contextos sociais precários, normalmente associados à falta de civilidade - e conseguiu triunfar, destacando-se e
adentrando na ágora do sucesso humano. Por último, outro tipo são os ídolos intelectuais. Os criadores de
idéias. São os produtores do texto ou da teoria eficaz, ou seja, aqueles que
atingiram a matéria com suas mentes. Síntese da civilização, do humano
civilizado, que vence a animalidade natural. Estes são perigosos.
Carregam em si toda uma simbologia da iluminação.
Gostaria de chamar atenção para o que me parece ser a melhor ilustração
de seu poder de ídolo intelectual: aquelas frases de efeito isoladas que
ficam se propagando nas mídias. Vemos chegando pelo céu
aquelas grandes frases, carregadas por aspas e com um Nome pendurado abaixo; essas frases que, carregando o devido nome e a devida
densidade lógica, nos causam grande impacto e nos tocam o corpo da
alma. Pois tal é a potência da palavras. Mas
acontece de vincularmos toda essa potência à esse nome, efeito da mera leitura de uma frase ou trecho genial no facebook. Fixa-se, mesmo
que num pequeno grau, essa potência numa imagem e então ela passa a ser
poder. E esse acúmulo vai aumentando conforme chegam mais e mais frases e
idéias isoladas e historinhas de genialidade. São esses os alimentos que atualmente estão à disposição da nossa fome de ídolos "reais". Sabemos, pela nossa educação secular, que os heróis fictícios são apenas metáforas, e que no mundo real, feitos muito menores são mil vezes mais significativos, porque são reais.
Chega a um ponto que os
ídolos tem o poder de sustentar o que nos faz crer na humanidade. Toda
aquela carga simbólica de realização, de heroísmo, de esperança na
inteligência, tudo isso vinculado e sustentado por um único nome-rosto. É
bastante perigoso. Uma árvore-da-vida
com uma raíz finíssima. Quanto tempo demora para descobrir alguma
contradição entre a coerência infinita de uma lógica e a pessoa humana
que a concebeu? Não muito. E não é apenas essa noção de humanidade que
está refém desse cordãozinho umbilical.
Einstein, Marx, Caetano Veloso, Osho, Prem Baba, para citar alguns
possíveis ídolos pop da classe média. São todos homens aparentemente
dotados de grande consciência, certo? São grandes ídolos, bons ídolos. E
eis que, quando assim o são, eis que grande parte daquilo que me faz
dar sentido ao mundo está sustentado por eles. Pois eu, aqui no meu
mundinho, onde abundam frustrações e faltam grandes feitos individuais,
mundinho infestado de exemplos da mediocridade humana, tenho assim a
prova de que, pelo menos em algum lugar, existem pessoas expressando
esse heroísmo. Heroísmo, um sujeito capaz de mudar o mundo para melhor. Como foi dito, um
valor fundamental para uma cultura ocidental que, ora messiânica, ora
individualista, atravessa hoje e há um bom tempo a maioria dos corpos na
Terra. Mas não é tão importante que eu ou que meus amigos sejamos
heróis. É importante que em algum lugar, e principalmente longe dessa
realidade cotidiana, cheia de sujeira e contradição, eles existam. Ora,
aqui eles teriam que lidar com a fila da lotérica! Eles apareceriam no
meu campo de visão formando uma imagem junto com aquele logotipo
horrível da loja de smartphones! Não, seria péssimo. Além disso, com
essa distância, posso fazer aqui a minha parte, livre de leões e
aventuras fatais, enquanto os grandes arautos da humanidade triunfam,
enquanto sustentam a minha imaginação fora de qualquer sombra de
materialidade. É uma importância profunda para uma subjetividade de
fundamento, de arborescência, em que muito está sustentado por pouco.
Mas está claro que isso apresenta um grande perigo. A traição fica,
assim, sempre à espreita.
Não aguentamos muito tempo sem alimentar nosso imaginário idólatra. Hora
ou outra precisamos beber da fonte, renovar o sentido da vida para além
das esteiras de asfalto que são o nosso dia-a-dia. Até porque a vida
nos demanda, mesmo que não queiramos ver assim, feitos enormes e para
realizá-los precisamos ter algum "chão" subjetivo: algo de sólido,
alguma ideia que preencha o niilismo assombroso que mitiga a nossa força
de desejar e nossa vontade de fazer. Então, quando não conhecemos outro
remédio, vamos atrás dos ídolos, que chegam a nós na forma de ecos
luminescentes de algum feito longínquo. Afinal, são nomes-rostos,
memórias coletivizadas. Um bom meio de nos ligar a ídolos do tipo
intelectual, por exemplo, é a leitura de um grande livro. Lemos um livro
por sua eficácia prática? Quanto da leitura é apenas a alimentação da ideia
de genialidade? Primeiro, queremos manter o autor no patamar de uma
consciência pura, e assim manter dentro do real a possibilidade da
coerência ilimitada. O gênio. O humano iluminando o mundo. Depois queremos, ao
entender algo do livro, sentir que pudemos ter um contato, mesmo que
pequeno, com esse plano iluminado. Até porque precisamos de provas dessa
iluminação na nossa própria experiência. Mas, claro, ler um livro é um
privilégio danado esses dias. Necessita de tempo e espaço e silêncio:
tudo aquilo que falta à maioria da população. Então, imersos no
cotidiano - composto em grande parte de uma grande, frenética fuga do
vazio existencial - devoramos frases salvadoras, exemplos de vida, atletas olímpicos, enfim, imagens que funcionam
como bombas de sentido. As frases, as músicas, as imagens, os fatos
biográficos... são exemplos rápidos de genialidade e heroísmo;
alimentação rápida do imaginário, fast-food subjetivo. Isso funciona bem
hoje em dia. As redes sociais são um reservatório inesgotável de luzes e gênios. Elas
filtram de todo o conteúdo disponível a parte mais
"gostosa", o neon mais bonito, que chega até nós quentinho e bem
apresentado. E como estas redes estão razoavelmente conquistando um
estatuto democrático, acabam mesmo ajudando a manter a população em
contato com seus ídolos em sua forma histórica atual: ecos de luz, imagens, estímulos. Sejam os
ídolos da novela, do esporte ou da academia.
Não menos importante é o caso de quando criamos ídolos à partir das pessoas reais
que conhecemos. Amigos, namoradas, artistas. Fotografamos um close certo
e pronto. É muito comum que aquela lacração, aquela realização que por um momento nos parece perfeita ganhe uma qualidade heróica em nossa mente. Mas a partir desse ponto, a pessoa passa a ficar menos
visível em detrimento do ídolo em que "ela" se tornou. Ela não se tornou nada. Ela
estava no fluxo. Nós que a recortamos com nosso desejo. E assim passamos a
agir como quem olha um quadro, criando uma distância onde não havia e
possivelmente desumanizando nossa relações, num sentido "positivo". "Ah, mas a imagem que tenho
de ti é tão perfeita!"
É exatamente esse o problema.
O problema é que essas imagens tem a espessura e a densidade de....
imagens. São recortes arbitrários da vida de uma pessoa, secções
artificiais e sem vínculo seguro com o real. Nós temos esse péssimo hábito de colocar as imagens na
frente das coisas enquanto corpos. E geralmente é
bem pior. Chegamos ao ponto de colar essas imagens diretamente
na nossa retina. Lentes ideais filtrando o mundo, afastando-nos de sua corporeidade errante, feita de pessoas. Pessoas são "erráveis",
contraditórias, mas também densas e atravessadas de tantas
subjetividades que só a singularidade, enquanto entrecruzamento de particulares e universais, pode equivaler. Sua realidade
sempre escapa de qualquer imagem. Mas chegamos a nos satisfazer com essa
realidade imagética, até porque essas nossas imagens são bastante
complexas e intrincadas, nos parecendo suficientemente "reais". Contudo, elas
não tem a textura, a imprevisibilidade inevitável do corpo, seus
relevos, sua topografia marcada de história e natureza. E mais: as
imagens, pela arbitrariedade de sua gênese, são projeções de nós mesmos.
Acaba que elas funcionam como espelhos opacos, estas superfícies com a
qualidade de refletirem a informação fotográfica que os atinge. E esses
espelhos estão cada vez mais opacos, uma reação que nos conduz
sutilmente a um maior aprisionamento em nós mesmos, o que no limite nos
levará a uma individualidade absoluta. Estamos numa sala de espelhos, um
espetáculo de luzes em que uma imagem remete sempre a outra. E aqui os
ídolos são perfeitos. Progridem, triunfam, atestam e provam (o que
queremos): a luz existe em estado puro. A questão é que a luz por si só
não satisfaz. Não é tão saborosa quanto um alimento, uma aventura ou um
abraço, por exemplo. Sua potência de nos abastecer tem um limite
"claro". Em algum momento a tentação nos vence e vamos querer tocar essa imagem tão linda.
Vamos querer encostar na pele de nossos heróis, nossos ídolos. É aí que
as coisas mudam drasticamente. Para nossa profunda frustração, o que
acabamos tocando é sempre o espelho: frio e liso. Alguns se arriscam com
mais vontade e o espelho acaba quebrando, revelando assim sua
materialidade brutal.
Quando uma pessoa mais destemida decide pesquisar sobre ou acompanhar a
vida de seu ídolo acaba sempre encontrando um episódio que corrompe a
imagem. Ouvimos dizer que Einstein mantinha uma relação quase senhorial
com sua esposa ou lemos
sobre um caso em que o iluminado Osho foi um violentador e ficamos
confusos. Isso citando apenas os ídolos da inteligência. Poderíamos aqui
citar o recente caso do bendito jogador de futebol, que causou uma
enorme onda de reações nas redes. O que nos importa é que há tantos casos desses quanto existem ídolos.
Procurando o suficiente em suas biografias ou esperando o tempo
necessário, encontraremos o famoso "podre" e é aí que os nossos ídolos
nos traem. É só questão de tempo.
Mas não precisamos nem ir tão longe, com esses exemplos trágicos. Pois o
simples contato com a corporeidade de um ídolo já é o suficiente para
quebrar o feitiço. Vê-lo em sua realidade prosaica, comum, mesmo que não
esteja realizando nada de terrível. Já é uma sujeira. Por menor que
seja, é um borrão no símbolo, no brasão. E é muito mais difícil ignorar
uma sujeira quando ela é isolada, no meio de um oceano de pureza e brilho.
Me parece sensato que, na impossibilidade de abolir as imagens,
diversifiquemos nosso gosto. De vez em quando, pintemos com pincéis mais
brutos, com gestos mais condizentes com a nossas vontades, e que o sujo
e a sombra esteja sempre presente em nossos símbolos.
Quando saímos do plano imagético e caminhamos no plano do que é
corpóreo, abundam os movimentos, os gestos, as mudanças drásticas de
direção e velocidade. Alguns recuam, reconstroem o espelho. Outras
continuam caminhando, e o pensamento, alimentado por essa nova
realidade, começa a ser infestado de contradições, que brotam como ervas
no asfalto. Às vezes ficamos absolutamente catárticos com a absurdidade
do real, fitando em choque as diabólicas plantas que racham concreto.
Outras vezes simplesmente somos preenchidos de sentido. Nesse caso, é que se está
mais próximo da alteridade, mais na borda de si mesmo, mais em contato
com a vida na sua pulsação perigosa e maravilhosa, mais próximo da realidade e sua factualidade impessoal.
Mas o que penso é que sempre se pode remodelar a imagem e criar para si
uma nova versão do velho esquema. Limpar o sótão é trabalhoso, mas temos
a tendência de preferir esse trabalho ao outro que é o de abandonar o
velho lar e embarcar no fora. E por isso eu digo que me assusta o quão
patéticos parecemos, nos sentindo traídos por uma imagem que nós mesmos
criamos. "Miseráveis traidores! Jogaram na lama minha... minha... minha
dependência". É duro, mas muito comum, que sintamos uma profunda
angústia vivendo à base de ídolos, já que vem a ser bastante natural que
as pessoas reais a que eles se referem destruam, com seus corpos
desejantes, essa estabilidade. A subjetividade investida toda em
símbolos é sujeita a profundas mortes, pois o real corpóreo não tarda e
rompe com facilidade nossos esquemas imagéticos. Isso dói.
O que eu posso dizer, agora, me contradizendo, é que os
ídolos não nos traem. Fiquemos calmos. Não nos traem porque não podem:
eles são exatamente o que pensamos que eles são. Como é razoável de se pensar, sua
natureza não lhes possibilita tal ato: são imagens fixas: estátuas:
experiências cristalizadas num museu da memória. O que erra não são
eles, coitados. Nem mesmo em movimento estão. O que erra são as pessoas
às quais vinculamos essas imagens. E que bom. Isso, para mim, tem mais
valor, pode vir até a acumular mais admiração em meu coração.
Minha proposta é que, de vez em quando, prefiramos uma pessoa estranha a um símbolo perfeito, pois a diferença é um nutriente vital. Já os ídolos... bom, os ídolos são exatamente o que pensamos que eles são. Agora, quando é que vamos nos emancipar de fato? Apenas quando os ídolos acabarem? Talvez não acabem tão cedo. Até lá, podemos agir diferentemente e, ao invés de os replicarmos sistematicamente, os vandalizarmos cotidianamente. Não as pessoas. Os ídolos.
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