08/08/2020
Muitas/os de nós, quando pensamos em extermínios populacionais, temos apenas referências europeias. Digo extermínios no sentido de uma morte social extraordinária, cuja causa se encontra para além da normalidade. A peste negra e o nazismo são exemplos. O impacto que elas causaram receberam, na historiografia ocidental, contornos mais ou menos determináveis, com números de mortes satisfatoriamente calculáveis e uma duração delimitável. Foi possível destacá-los na história. Tornaram-se eventos. À partir do momento que escapam à normalidade e que recebem contornos espaço-temporais, tornam-se eventos. Nós, enquanto sujeitos históricos, criamos os eventos. A história, como ciência e como memória, tem a potência de produzir eventos e assim tornar perceptível aquilo que não pode passar despercebido. E tornando perceptível, visível, a coisa passa a afetar a sociedade, impelindo à mudança. Não apenas porque o extermínio é moralmente ruim, mas porque é obsceno: impossível não sentir-se atingido. É assim que se rasga um velho tecido social. É assim que se prossegue com uma nova trama.
Mas o que aconteceria numa sociedade em que o genocídio não tem contornos claros? Onde não é possível calcular com precisão satisfatória os mortos e os assassinos? Onde a maior parte da população é minoritária? Onde o tempo de duração do extermínio se confunde com a própria existência dessa sociedade? No Brasil, não há vulcões ou terremotos; não vemos os tais eventos. Ou, seria preciso dizer, o Brasil é o evento. E está acontecendo agora.
A morte aqui é distribuída como um gás na atmosfera da vida, de modo que ambos se confundem, se misturam e, por fim, se tornam indiscerníveis. Aqui o genocídio é visível sempre, mas apenas para a parte mais invisível da população. O que acontece com algo que está sempre visível, e não aparece como fenômeno extraordinário? Se a única regra universal é a vida, no Brasil temos o exemplo mais claro do estado de exceção que substitui essa máxima, tornando-se ele mesmo a regra. Como? Bom, nós sabemos que o ser humano é capaz de realizar o que parecia impossível, graças à tão louvada tecnologia. E não há um exemplo mais sofisticado de tecnologia do que esta: a necropolítica brasileira.
Aqui o assassinato nunca é extraordinário. Nunca se torna obsceno, mesmo até quando chega à grande mídia, como nos casos recentes de Miguel e João Pedro, ou Ágatha no ano passado. Fatos obscenos, intoleráveis, mas que aqui podem ser tratados como “apenas mais um, visto que tantos outros equivalentes os rodeiam”. Tratamento que ainda ganha méritos de racionalidade. Aquilo que partilhamos como “brasileiros”, nossa psicologia social, nasceu do extermínio e da crueldade. De tal modo que casos como esses não configuram trauma, nem mesmo um “evento” no sentido de quebra, mas sim a repetição de uma cena, a cena genética da nação. São o reflexo de um passado que não para de passar. A cisão senhor x escrava(o) — que poderia ser chamada de estupro ou de latrocínio — é o que há de mais fundamental no projeto Brasil de país. Não foi um mero “pecado original”, é uma vida inteira dedicada ao nefasto. Essa história não é apenas ruim, é insuportável.
Foram 520 anos aperfeiçoando a capacidade de, por um lado, naturalizar o assassinato, com as narrativas:
“ah, mas a polícia funciona assim mesmo!”;
“puts, triste né.. mas o fazendeiro apenas estava defendendo sua propriedade”;
“a população de rua é culpa da vagabundagem inerente ao ser humano!”;
“mulher morre mais porque nasce para o pecado!;
e agora
“o covid não escolhe classes”.
De um lado, a necropolítica possibilita essas contra-narrativas, quando o extermínio chega à visibilidade. Por outro, conseguir tornar o genocídio invisível, de tão onipresente.
Então, temos essa naturalização do assassinato. Para produzir o efeito de paz, criam-se narrativas que têm como modelo essas acima. Servem para tranquilizar em relação ao que, a duras penas, chega a aparecer na mídia hegemônica. Servem, acima de tudo, para realimentar a imagem pacífica de uma sociedade brasileira, soberana, composta de sujeitos, iguais e democráticos. O estado de exceção está estruturado de modo que cada vez que se reproduz a imagem da paz, aprofunda-se a realidade da guerra, e vice-versa. E quem morre na paz, morre uma morte natural, morte morrida. Mas todos estes corpos mortos, que eventualmente aparecem na TV, são vítimas de morte matada. São vítimas de um crime estrutural. São pessoas assassinadas pela reencarnação dos senhores donos da terra, hoje já sem rosto, dissolvidos na imaterialidade do capital (embora o rosto do presidente crie uma representação potente o suficiente para parecer a raíz do problema).
É extermínio consciente, guerra. Mas quando esses assassinatos surgem no JN, narra-se e entende-se o fato como morte morrida. Culpa da natureza ruim do humano ou da sociedade. Nada surpreendente, apenas é como é. Guerra é paz. Mas a verdade é que, vivendo ainda a atualização da escravidão, toda a morte do preto pobre e da indígena será morte matada. E é nesse sentido que, no Brasil, o número de mortes num caráter excepcional — caráter de estado de exceção — extrapola todos os nossos registros. E, ao mesmo tempo, é por ser tão fundido à própria normalidade, que os olhos vítreos da sociedade “brasileira” sempre perceberão tais mortes como morte morrida.
Ainda sobre a questão dos registros, insistimos: não está documentado, no sentido de que não temos estimativas numéricas de quantas pessoas foram exterminadas nessa história, como tem a Europa em relação ao nazismo. Não está documentado, mas está marcado à ferro e fogo na pele daquela população marginalizada. Esta memória é sólida como uma rocha, dolorosa como uma rocha nas costas, mas por falta de políticas públicas de memória social, não se produzem os documentos, monumentos e em última instância, a cultura necessária para tornar visível, definida e incontestável a realidade genocida de nossa história.
Voltando agora à questão atual. É preciso insistir que estas técnicas narrativas que invertem o significado original da morte e transformam guerra em paz produzem efeitos profundos, para muito além dos casos que brotam no noticiário. No geral, elas regem o próprio cotidiano brasileiro, principalmente na vida periférica. Nesse cotidiano, temos a repetição ad infinitum da cena genética, que é o crime: racismo efetivado em homicídio, estupro e latrocínio. Crimes transformados em norma, que por sua vez é prolongada de modo demoníaco na forma exploração. Esta, que passa a ser chamada de “trabalho”.
Tanto o “trabalho” da pessoa pobre, que é o de morrer o mais quieta possível, quanto o “trabalho” do poderoso, que é o de matar do modo mais silencioso possível. E o da pequena burguesia, que é a de criar a representação de uma democracia virtual que nunca se concretiza. Claro, isso também se dá de modo barulhento e brutal, quando a turbulência pede mais velocidade na execução. Quer dizer, pensando na ação das polícias e das milícias, também há a realidade da morte física, obscenamente visível. Mas ainda assim, a tecnologia de narrativa é tão bem estruturada, que nem mesmo a essas dores é dada a chance de ser socializadas de modo amplo. O luto não acontece socialmente, e se acumula nos corações dos corpos invisíveis. Será possível quebrar esse estado de exceção? Tornar visível o evento da guerra?
Acredito que foi razoável pensar que a atual pandemia de Covid pudesse ser a fonte de uma quebra. Cem mil mortes em cinco meses, mil mortes por dia, curva que não declina e, ainda, um grande diferencial: são noticiados, aparecem! Os números, mesmo escamoteados pela sub-notificação, já gritam: é algo fora da ordem, combustível mais que suficiente para uma quebra. E continua sendo razoável pensar que esses números têm, potencialmente, a força para tornar o extermínio um evento que mostre a exceção e produza luto, algo que neste país jamais aconteceu em escala nacional. Um evento visível, difundível e capaz de produzir lutos, rasgos e reestruturação. Explodir em luta radical. Pois para qualquer sociedade que se diga soberana e democrática, a atual crise sanitária seria vista como erupção de morte e seria matéria de trauma. Mas o que temos aqui é um estado de exceção, não uma sociedade.
Quando o estupro já não é motivo de ruptura, quando o racismo torna-se tolerável, quando a queimada de terras nativas é recheio de telejornal, não será a pandemia que fará brotar, na percepção do brasileiro, aquilo que é mais necessário: o obsceno. O obsceno que É o Brasil. Mas o Brasil só tem olhos para fora de si. Se os vira para dentro e vê sua história, nada sobra: vomitaria sem parar, até a morte. Porque não é uma questão moral; não se trata apenas de conscientizar-se do mal. É preciso que vísceras se contorçam, que o estômago embrulhe, que o peito ferva. É preciso tensionar os corpos vivos. É nesse sentido que a luta é afetiva, não afável.
É com o afeto também que pesamos o fato: nosso inimigo é poderoso. A situação convida constantemente à paralisia. Prostradas/os diante da impotência que vezes nos atinge, nos agarramos à uma esperança trágica. Nos perguntamos se a intensificação do genocídio pela pandemia terá ela própria a capacidade de gerar um salto qualitativo na injustiça, à ponto de tornar visível às bases o estado de exceção em que vivem. “Talvez o porvir dê conta de produzir a percepção de que não há mais nada a perder”. Esperança na providência. Tal é o estado desolado em que nos encontramos muitas vezes. É uma esperança covarde e desmobilizante. Mas é preciso admitir que a sensação de derrota, se não se apossou de nós, no mínimo nos atingiu. Encaremos de frente essa impotência. Não como condição, mas como pura sensação. Mergulhemos ainda mais fundo na escuridão para encontrar a mais negativa das realidades: não, nem mesmo o caráter aberrante da pandemia irá furar, por si só, as defesas inimigas. Que a pandemia é gasolina e a necropolítica é um trator.
No entanto, é preciso insistir na verdade. Mesmo sabendo que a crise de saúde pública é apenas um intensificador de qualidades estruturais já existentes, mesmo sabendo da aberrante naturalização do genocídio negro e indígena, é preciso insistir em reverberar em volume amplificado cada uma das mortes, como quem grita: assassinato! À ponto de incomodar os ouvidos sossegados com a potência do obsceno. É insistindo no que sabemos e dando tudo que temos para amplificar essa voz ancestral, que vamos penetrar os muitos isolamentos ideológicos com a memória da guerra e reverter a mentira. Não, não estamos em paz! Se a guerra se tornar evidente, as barricadas também se tornarão, as alianças se farão com mais rapidez e a confusão não será empecilho para o movimento. Sim, pode ser uma guerra silenciosa, descentralizada, onde qualquer lugar é o front. Mas é pela qualidade mesma da descentralização, que toda e qualquer atitude benéfica à vida e ao espírito social tem seu lugar histórico, numa história latente, pulsante e concreta, pronta para inundar essa normalidade nefasta. Vidas pretas importam, vidas indígenas importam! Nós não esqueceremos. E a hora da verdadeira Justiça chegará.
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