11/05/23

O Monumento



Os donos do condomínio não sabiam o que fazer com a área abandonada onde antes havia um triste conjunto de brinquedões de ferro, onde era o "parquinho" do prédio. Entendo que esse "parquinho" era tão desinteressante e imprático, que era quase conceitual. Nunca vi nele uma criança sequer. Mas não bastasse isso, mandaram retirar os brinquedos. Agora, restava apenas uma demarcação, uma forma geométrica realizada, sem nenhuma função prática, nem para um humano nem para a vida, já que a área era completamente estéril. Seu contorno era uma mureta baixa e, sobre a área de cimento, uma cobertura de quase meio metro de pedras de calcário. A extensão era de aproximados 90 metros quadrados. Sem nada além de pedregulhos ásperos e cimento.

A área formava uma espécie de grande retângulo com uma boca, uma saliência. Aquilo, disposto daquela maneira tão despropositada e, ao mesmo tempo, tão calculada, era fonte de um sentimento singular. Bizarrice, estranheza, angústia, secura, um híbrido desses.

Mesmo quando existia ali o conjunto de escorregador, trepa-trepa e outras três estruturas de ferro que não sei nomear, o lugar já me causava um impacto que posso chamar de estético. Ignorá-lo era difícil. Com frequência me percebia atento a ele quando me apoiava na janela do meu apartamento ou quando me sentava no jardim do prédio para fumar. Talvez pelo exagero e magnitude com que aquela nulidade tinha sido construída, talvez por não conseguir imaginar facilmente crianças reais se divertindo num espaço tão agressivo. Mas esse parquinho havia, sim, sido projetado e construído. Então, pelo menos, aquele projeto fez sentir ou fez sentido para alguém, por menor que tenha sido esse momento. Por mais que apenas um apêndice técnico da competência de um arquiteto medíocre... a mínima intenção era mais que o nada. Agora, nem parquinho, não. Jamais pensei que o nada pudesse se materializar em existência.

Aquilo claramente não significava nada, não suscitava nenhum prazer e não despertaria interesse a nenhuma consciência. Mas era justamente essa qualidade negativa, de uma espessa inutilidade concretizada... Enfim, desde há muito tempo acredito que a existência física desse lugar era como a fala em associação livre deste mundo, revelando algo de patológico, perverso ou inescrutável. Um sintoma. Mas o que há de anormal no inútil?

Que isso exista... É realmente uma forma bizarra da natureza. Não apenas o frame atual, mas a somatória de todos os estágios que levaram a esse resultado arquitetônico. A mobilização massiva de mão de obra e matéria, a desimportância com que alguém projeta um condomínio, a apatia com relação à morada de outros seres-humanos ignorada em favor da recompensa salarial. Um lugar daquele tamanho e densidade, mobilizador da matéria de lugares tantos e distantes, tem toda sua existência delegada pelo estímulo apático do... demasiadamente humano? Aquela área inteira nasceu do afazer rotineiro de um projetista qualquer, meramente perseguindo o seu poder de consumo. Um jogo mecânico, um arranjo de técnicas, um programa. Essa sequência de eventos era também a concretização do inútil, do irracional em sua forma mais forçada. Sintoma social da obsessão financeira? Marco histórico da vitória ontológica do abstrato? Que ordem estranha de acontecimentos! Que arranjo tão imprevisivelmente ordenado onde reside tão pouca imprevisibilidade! Que argumento ferrenho para provar um ponto tão adimensional.

Não que o entorno - o prédio, o bairro, a própria cidade de São Paulo - já não representasse todas essas impressões, pois sim, já o faz e todos os dias. O entorno tão enorme da cidade. Imagino quão expoencialmente maior será o deslocamento material e laborioso de uma cidade inteira. Assustador. Mas por algum motivo peculiar, aquele recorte específico do tempo-espaço, aquela bacia estúpida de cimento forrado de calcário quebrado emanava algo de irresistível aos meus sentidos. Algo de um mistério tão patentemente anti-natural. A falta de características próprias combinada com o número pequeno de características tão específicas era um fenômeno já quase fascinante e há muito tempo incômodo. Penso nos organismos das árvores próximas, dos pássaros que ali pousam. Esse aparente contraste de coisas que pareceriam tão opostas, ainda assim coexistindo sem grandes alvoroços. Sem que isso significasse qualquer ruptura ou conflito. É mesmo muito estranho se deparar com os desafios que o ser humano impõe à natureza, talvez porque assim se faz notar que não há desafios e que não há Natureza.



____

Tais quadros continuariam a ser pintados na minha mente eternamente e com a mesma paleta de cores se não fosse a vez que, ao reiniciar minha rotina de observação daquele espaço, minha percepção trouxe à consciência traços de uma diferença. Algo ali era outro. Comprimindo os olhos com espanto, dava-me conta das incalculáveis horas que havia passado naquela sutil e inútil obsessão, e me enjoava um pouco. Era provável que eu estivesse testemunhando a minha insanidade. Mas, ao testar novamente a visão, ficou ainda mais evidente a diferença. Como ressalva, pensei se tratar dum engano visual trivial. Distante, na janela do oitavo andar, era natural que não fosse detalhada aquela visão; dali, o "parquinho" não passava de um retângulo preenchido por uma textura formada de tons de cinza-cimento. Enfim, a luz era de fim de tarde, e a sombra era uma presença objetiva. Então, avancei meu corpo sobre o parapeito, mais pra fora da janela, afim de ter um ângulo melhor. Para minha surpresa, a diferença tornava-se ainda mais evidente, de modo que já apreendia uma certa coloração verde, que se insinuava de modo bastante esparso ao longo da área. O cinza e o verde ora se fundiam, ora se mostravam destacados um do outro: fundo cinza, pontos verdes.

O enjôo continuava, e parecia significar um medo da possibilidade do delírio. Talvez por um mecanismo incorporado de hábito, talvez por um desejo incontrolável de transformação, eu continuava observando aquele nada. Alguns fitam paredes, certo? Porque eu continuava fitando aquela insignificância? O medo se ligava à possibilidade de que eu estivesse perdendo a minha percepção para um outro Eu, mais livre e muito menos próximo da realidade, capaz de transpor as barreiras do interior e do exterior, imputando colorações nas coisas baças. Uma espécie de miragem. Mas eu não estava com sede nem mal alimentado.

A consciência tomou pela força meus nervos, meu cérebro, meu pensamento, e os fundiu numa mente que afirmava de modo senhorial: isto é apenas uma ilusão. Um engano. Devo me desvencilhar imediatamente deste vício e voltar-me para aquele cotidiano em que eu não precisava sentir sede ou ficar mal alimentado, o cotidiano de uma pessoa saudável, sã, que não se verga na janela do oitavo andar atrás de fenômenos nulos. Décadas vivendo num deserto de concreto me haviam implantado uma consciência cética que apaga sistematicamente as aparições inconclusivas que a vida nos concede.

Assim, imediatamente, os pontos verdes começaram a desaparecer e o pequeno reino de cimento e calcário assumia seu aspecto normal. O cinza, com toda sua esterilidade, retomava o território. Ora, não era isso que eu queria? Não. Aparentemente, com esse retorno triunfal da normalidade, o esforço que minha consciência fazia para sanar a situação, que já era limítrofe, se tornou insuficiente, e eu já não conseguia mais interditar aquele outro Eu que via outra coisa, que desejava ver outra coisa, que precisava ver outra coisa. Ao perceber que minha consciência tinha destruído a miragem, um medo ainda maior do que aquele medo da insanidade, um medo da morte, se apossou de mim. Eu não podia deixar escapar aquele verdume tão ousado que por um instante fez tremer o regime de nulidade que até então explorava meu ócio. Não tive nem tempo de me espantar com tão brusca tergiversação e, quando olhei novamente para o térreo, procurando a área verde-cinza, percebi que estava a ponto de tombar para fora da janela. Assustado, recuei com tanta brutalidade que ralei minha barriga no parapeito. A dor que ali senti expressava a agonística que eu abrigava: minha consciência e meu desejo lutavam.

O ritmo da minha respiração destoava da banalidade do ambiente e da situação real em que me encontrava. Eu estava na sala do meu apartamento, entre o sofá e a televisão, ofegando. Ignorando os clamores da consciência, murmúrios abafados que provavelmente me colocariam para perceber a normalidade da situação, decidi que precisava descer até o térreo e verificar, de perto, a verdade daquele verde.

O percurso começava ali, na sala, entre a mobília, passaria pelo hall de espera do elevador e terminaria atravessando as dependências do prédio até o parquinho. Nenhum caminho poderia ser mais bem pavimentado e livre de surpresas. A nítida definição dos objetos que me cercavam, sua imobilidade e desinteresse, atestavam a minha sanidade, excluíam a possibilidade de delírio, mas, ao mesmo tempo, aumentavam a urgência que me levava. Nada era anormal e justamente a experiência dessa sobriedade, a percepção tão segura das coisas, me trazia um medo de que, talvez, não houvesse nenhuma diferença. Entre as coisas, entre o que passou e o que se passa, entre mim e aquele amontoado de cimento e pedras de calcário que gritavam o vazio. Não a ideia do vazio, mas o vazio meticulosamente construído, materializado, desenvolvido, tecnologicamente fabricado, resultante de milênios de civilização, que acabaria por encerrar a História. As paredes, o piso, o botão do elevador, o seu interior, minhas próprias mãos, enfim, tudo era insuportavelmente artificial. E a facilidade que esse artifício trazia apenas reduzia a fricção entre o ponto A e o ponto B do meu percurso. Absolutamente nada mais do que isso. Então, só restava saber se aquela diferença que avistei no ex-parquinho, seja real ou não, tinha duração suficiente para que eu pudesse avistá-la de novo, de perto, e aliviar meu espírito.

As dependências do térreo são decoradas com móveis que ninguém utiliza, com poltronas "de espera" nas quais ninguém nunca sentou, com samambaias artificiais, quadros de doação da família do síndico, esse tipo de arranjo que, na tentativa de trazer hospitalidade para o ambiente, acaba explicitando a inconveniência que seria sentar-se ali. E era tudo muito explítico, muito obsceno, de uma proximidade tão pertubadora, que passei a correr em direção ao ex-parquinho.

Sob a luz morna de um entardecer branco, lá estava ela, aquela demarcação. O muro de meio metro formava um grande polígono, suavemente irregular, de cinco lados, num dos quais havia uma abertura, por onde algumas pedras de calcário escapavam. Talvez alguém, alguma criança, tenha entrado ali, corrido, mudando ligeiramente a disposição das pedras, de modo que, ao sair, algumas foram chutadas pra fora da área. Notei que não havia nada de especial nas pedras, mas segui até a entrada. A primeira visão da área também não trouxe consigo nenhuma diferença. Calcário e cimento. Avancei dois passos sobre os pedregulhos, observando o lugar com uma espécie de psiquismo ativo. Eu já não procurava nada. Naquele momento, já sabia que não se tratava de encontrar uma diferença, mas de fazê-la surgir pelo ímpeto que nascia da minha incredulidade. Minha cabeça doía, como se meu cérebro estivesse inchando. Caminhei obstinado, mas sem direção, ao longo do parquinho, enquanto escutava o som dos meus passos fazendo gritar a aspereza das pedras, o contado das pedras com as pedras, o atrito das pedras com o chão. Queria o ângulo derradeiro, que me faria vencedor e, como eram quase noventa metros quadrados de homogeneidade, seria preciso fazer uma obstinada varredura para encontrá-lo. Percorri zigue-zagues e rabisquei aleatoriamente aquela área, mas o traço de meu percurso era tão sutil que chegava ao imperceptível. Não fazia nenhuma diferença. Subi no pequeno muro, para testar um ângulo de visão mais englobante, e nada. Meu rosto estava contraído de frustração. Agachei-me, pus as mãos sobre as pedras, peguei um punhado e senti, com voluptuosidade, sua textura. Não havia absolutamente nada ali. Mas, a decepção era tão grande, e me senti tão envergonhado diante de minha consciência, que subitamente esvaíram-se todos os meus impulsos, mesmo os mais mecânicos, e me larguei como um saco sobre aquele calcário, apenas para constatar que ele não estava nem quente, nem frio.



_____

Esse incidente produziu algum efeito sobre mim, não posso negar. Mas não passou de um momento de liberdade que me permiti, tentando imputar sobre a realidade uma loucura minha que, ao que parece, não existe de fato. Depois de ter ficado algum tempo largado sobre o calcário, voltei e retomei o cotidiano. A mudança foi pequena, mas real. Percebi que não era prudente perder tempo com nulidades, observando a insignificância daquela área do meu prédio. Afinal, nada ali era substancialmente diferente do entorno, da cidade de São Paulo e seus inumeráveis vazios concretizados. Contudo, devo confessar que, de vez em quando, ainda me pego olhando pela janela, naquele mesmo ângulo, na mesma hora do dia, esperando me surpreender, novamente, com alguma diferença.


14/02/22

utopia

imaginem uma ditadura
não há chicotes
tangíveis

imaginem o espetáculo
a tortura
não há sangue

a sobrevida do escravo
vira imagem do sucesso
resiliência
exemplo

o trabalho do carrasco
expressa o mal
sua morte
o bem

agora,
imaginem um senhor
prédios iguais
espelhados
imunes
à nossa revolta






21/01/22

um trago esperando na rua

edição de um poema de 2018

 

Queria por um momento
que a pele da serpente
se invertesse
com o mundo,

que o ar me ligasse
a escamas viscosas
beijando
em todos os lábios dos poros;

que o ar me mordesse
em cada textura escondida,
que fosse
muito menos sutil.

Pervertam as mônadas
em gordas
escamas de atrito
para que a cobra converta,
inverta seu dentro no fora,
e o ar
que nos liga em soltura
se lote
suado
dos pulsos e músculos seus.

Rajadas de vento
no máximo tangem o bafo.
É frio em contraste
com nosso desejo.

Conquistar nas venturas
calor carnudo de apertos
das duras paredes
de um corpo curvo
que esgote
o espaço.

23/12/21

o sonho do autômato

liberdade é uma questão de escolha.
essa frase é um absurdo e se refere precisamente à realidade.
não se pode ser livre sem que a liberdade esteja possibilitada antes.
você não pode conquistar a liberdade porque a conquista é um modo de agir.
penso que agir implica uma fagulha de não-determinação ou, no mínimo, uma contra-determinação.
ao menos é nessa direção que o sentido da palavra aponta.
então há um paradoxo: ter de conquistar a liberdade é não tê-la.
não ter liberdade é impossibilidade de agir e, portanto, de conquistar.
parece uma rua sem saída.
por outro lado, parece um deserto.


por liberdade entende-se a ausência de impedimentos externos, que tiram o poder
de se fazer o que se quer*
de se pensar o que se quer
de ser o que se quer
enfim de realizar

nesse sentido, liberdade é apenas desejo
mas o desejo de comer dá em liberdade?
matar a fome é libertar-se?

um animal, entendido como um ser de instintos, pode fazer o que deseja
um autômato, entendido como um animal artificial, pode fazer o que deseja seu artífice
contudo estas potências
são liberdades paupérrimas
são potências mínimas

quando pautamos a liberdade humana, não é de potências mínimas que falamos
não é da potência do autômato porque
por mais complexo ou extraordinário que seja seu ato
por mais articulações que movimente
nada que faz escapa
de uma determinação

(a não ser que a falha,
o atrito,
o curto-circuito,
sejam feitos
ou contra-determinações)

a liberdade humana é mais
do que poder matar a fome
mais do que poder comprar iPhone
porque essas potências
são potências do animal
e do autômato

nossa pauta é uma potência maior
que a do ser de instintos
que a do ser autômato
por mais sofisticados seus cálculos
tecnológicas suas atividades
por mais delicadas suas articulações
caprichosas suas vontades
não escapa a uma determinação
um robô pode tudo isso

só é livre o artífice:
o que determina a potência do animal

pensou-se que era deus
pensou-se que era a razão universal
hoje pensamos
que é o capital

Klimt





*Thomas Hobbes, "O Leviatã"

08/12/21

a recife criativa da unesco

 

"Recifenses conferem o título de condenscendente à Unesco."
 
Mas falando sério, eu fico muito incomodado lendo coisas como "Recife se tornou uma cidade criativa". Claro que, mediante uma reflexãozinha bem banal, a gente já ressalva que é "só um título conferido por tal instituição". Mas o que há por trás dessa nomeação? É um ato de linguagem, é um ato que engendra uma concepção de mundo. Uma concepção globalista, que toma o "Mundo" como ponto de partida. E aí já vem a imagem da esfera azul e verde. O "olho que tudo vê" dos satélites, a tecnosfera enquanto uma espécie de entidade transcendental, capaz de conferir e retirar essências das coisas do mundo. Enfim, um pacto social global que tenta regular o jogo entre imperialismos, e essas instituições internacionais com o papel de juízes universais. Porque é a UNESCO que valora Recife, e não Recife que valora a UNESCO? Não desprezo os efeitos benéficos desse ato de linguagem, na medida em que pode atrair recursos materiais pras comunidades locais. Mas é ingênuo relevar o fato de que a Recife-da-UNESCO é vinculada a uma perspectiva burguesa e mercadológica. De que esses recursos chegarão destinados à essa Recife - Cidade Criativa, a mais nova mercadoria capaz de gerar valor para esse capital cada vez mais incorporado à tecnosfera. E, bem, que isso aumente a renda de algumas pessoas, que pequenas empresas de turismo se beneficiem disso, que oportunidades nasçam para empreendedores praticarem o "cálculo racional", "serem racionais", e, se abstendo dos afetos locais e suas valorações próprias, vislumbrar uma "criativa" forma-mercadoria de sua própria terra, de sua própria história, de sua própria verdade. Vejam aí o PIB aumentando, a glória econômica coroando a UNESCO como Leviatã, autômato hiper-complexo, invenção científica, que levará a humanidade para seu futuro prometido, de muito consumo, novas moedas. E assim, da singela vontade de aumentar sua qualidade de vida e participar desse futuro, esses novos empreendedores sem saber se transformam na lubrificação da máquina global, ou, quiçá, nas novas linhas do código do grande software. O que é fácil de entender, no entanto, é que na sombra dos crescimentos econômicos há uma edificação de novos abismos entre as pessoas, entre as espécies, entre classes, etc. E a cidade de Recife, que sempre foi "uma cidade criativa", para a qual a palavra "criativa" é quase uma diminuição, veste seu uniforme de competidora global, ganha sua insígnia e avança nas raias do progresso.

07/12/21

eu, pequeno burguês

 Reedição de um poema de 2018


Fumadora de ópio, Fernand Cormon
 

 

a questão toda da sua vida toda ser apenas um universo infinito de demolições
ou ser uma raspa de tijolo quente como a baba de um sol convulsionando
na sala de estar

nascemos pra trair o bom nascimento

então a única maneira de fazer do jeito certo é se lançar pra fora cada vez mais pra fora e estabelecer contato com os dentes dos ratos e lembrar de todo o horror e
se culpar e queimar junto com a culpa de tudo
até não existir mais como pensar em voltar a sentir saudades da infância

com toda essa discussão silenciosa, a micro política a macro política...
qual é a ponte entre as duas ?
cadê a possibilidade de ação ?

o outro é sempre o pior, o fascista, o reaça, o ignorante, o bolsonaro, o "aquele", o "eu" que represento, minha identidade top
ah mas que droga. deveria fazer algo com a minha vida já que
teoricamente tenho todas as armas teóricas na mão.. o chumbo logo apodrece,
logo vai espalhar suas toxinas opressivas no ar ao meu redor. é preciso agir.
vamos logo às pesquisas, fazer trabalho científico, produzir conhecimento
vamos logo às bases, conversar ouvir entender mudar de hábitos
vamos, rápido, pras barricadas trincheiras piquetes explodir bancos
vamos eleger presidentes estudados e representativos de minorias
vamos seu inútil
mas
afinal,
se eu não tenho nem vontade de
parar de comer pacotes inteiros de bis depois do almoço
dormir mais cedo, dormir melhor, dormir de fato
cuidar de um corpo próximo como o "meu" próprio
realizar metade dos projetos que minha mente produz incessantemente
produzindo ideias, planos, planos perfeitos
se às vezes não tenho nem vontade de querer
parar de sofrer
nem dar a cara a bater
implacavelmente rendido à condição factual de ser uma mediocridade definitiva
como posso, ainda, me relacionar como humano?
é possível chegar na conclusão mais nefasta sobre mim mesmo
é possível, é fácil, é
normal até
o mundo parece uma mãe cujo rosto envergonhado vai pairar sobre minha pele
até o fogo da próxima morte


e então acordarei novamente, repetido, suficientemente esquecido,
e vou pegar o busão,
com uma poça a mais no peito

02/12/21

simulacras

Reedição de um poema de 2019.

  É crescente a flora infernal que esgueira seu tortuoso apetite
nas sombras retidas atrás.
Atrás das placas
polidas típicas
pálidas máquinas cívicas.
Atrás das peças.
Por entre as soldas
que em continência
não podem as ver.
São elas as ervas
danadas. Diabas.
Racham paredes,
bebem concreto,
pixam os corpos e
transam o lixo.
Enfim elas gestam
com vulvas nas testas
os templos profanos
e conjuram o fim
das finalidades.

 

Poppies' (ポピー),1925, Takashima Yajuro