31/10/19

profanar o tribunal

 31/10/2019

A "justiça" que tem cara de homem é a burocracia;
a verdadeira Justiça não tem rosto e não tem código.

Mas o mundo está tão hominizado que provar o crime do presidente seria de fato o que traria a Justiça, embora ele mereça o fogo independentemente das provas e da ligação causal dele com o assassinato. De fato, provar a ligação direta dele com o crime traria consequências imediatas, cuja velocidade e tangibilidade seriam mais que necessárias, em virtude das urgências de nossa situação. Mas nunca nos esqueçamos que nós já sabemos o que produziu as condições pro assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes. Não apenas estruturalmente. É concreto o patriarcado o racismo e o fascismo que transforma em navalha afiada o ar que circunda corpos de mulheres negras insubmissas e de modo mais rarefeito os de toda a população. Lâmina vacilante, que pode cortar a qualquer momento e dos modos mais terríveis. Isso é concreto demais para ser entendido como metáfora. Em potência, esse assassinato está acontecendo em todo lugar.

É importante lembrar disso pra não gastarmos nossas expectativas com o processos da máquina burocrática. Gritar pela justiça penal do presidente é como xingar um computador. Perda de energia. Numa perspectiva ética, que se foda se ele teve ou não relação causal objetiva com o assassinato. Nós sabemos muito claramente que as ações e até a própria existência dele nos modos como se apresenta hoje, e de todos os homens poderosos, é responsável diretamente pela morte de milhões, incluindo a da simbólica deputada. Nem tudo que é concreto é linear e causal. A maior parte não é. Esse homem existe para muito, muito além daquilo que o seu corpo individual é capaz de produzir, do que suas mãos podem ativar ou suas ordens podem definir.

Como todo poderoso, seu campo de ação repercute em dimensões imensuráveis. Este poder de que é abastado se realiza de modo econômico. Mas também, e principalmente, pela mídia, que expande sua imagem e suas falas por todo o território brasileiro, aumentando exponencialmente a realidade, a existência e a potência deste mísero homem. Suas ações e seus modos ecoam pelos meios de comunicação que hoje se multiplicam num fractal de área infinita - telas nos rostos -  e encontram campo fértil para se expandir na subjetividade e nos desejos de milhões de pessoas que via de regra consomem essas imagens e áudios de modo acrítico. Muitas vezes até predispostos à imitação. Sem falar das fake news. Assim a presença ativa deste jairbolso efetivamente se expande para muito além de seu próprio corpo. Sua manifesta vontade pelo extermínio daquilo que ele considera inimigo (ou menos homem que ele) ganha muitos outros corpos, que agora se sentem guiados, com um líder absolutamente legitimado.

Mas antes mesmo dessa figura individual se alastrar por aí, o homem branco rico miliciano enquanto identidade, enquanto modo de agir e pensar, com seus valores e suas medidas específicas, este homem já estava por toda parte. Ganhou sua manifestação mais exemplar no agora presidente. Ele é como a precipitação visível da substância que há muito já estava se saturando na nossa solução social. Graças a sua aparição, está definido o caráter do nosso adversário impessoal, fantasma que se confunde com a atmosfera. Este adversário não é exatamente um tipo de pessoa, mas um campo de ações que as pessoas, todas elas, podem ou não adentrar. E quando o fazem, a chance de mais Marielles assassinadas pode chegar à iminência.

Munido dessa percepção acerca da ação, a conversa sobre Justiça toma uma forma impensável do ponto de vista causal linear. Aqui, a arminha que o presidente fez com a mão furou de fato o corpo de Marielle de muitas outras. Mas a máquina burocrática que é a justiça do homem não pode agir sobre aquilo que não é provado categoricamente. A ação que acontece para além do encontro de indivíduos em um dado espaço-tempo e que não está definitivamente descrita, é a ação das forças que atravessam as pessoas desde a sua intimidade até sua coletividade. Quem pode julgar essa ação, quiçá abrindo espaço para a Justiça enquanto força, somos nós: testemunhas-réus-vítimas-juízes. E o jurado é a nossa bagagem. Profanar o tribunal é devolvê-lo ao uso comum, performando-o, fazendo do nosso corpo o seu cénario.

Eu acredito que existem pessoas éticas ocupando o Estado e a Lei, trabalhando para que a verdadeira Justiça a(s)cenda dentro dos gabinetes e escritórios. Mas não podemos depositar todas as nossas esperanças nessas pessoas, que são pouquíssimas. Prolonguemos o trabalho dest_s e percebamos em nossos lugares de ocupação o que está burocratizando a emergência da Justiça. Façamos nascer o fogo nos lugares em que ele é urgente.


chile

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