10/09/21

apresentação do autor e a questão do híbrido

 

não encontrei a/o autor/a desse desenho

Minhas primeiras memórias de escrita são da escola. Aulas de redação. De fato, não é um exemplo bonito de início, daqueles que uma criança poética se encanta com o poder de colocar palavras num papel. No meu caso, foi bem diferente disso. Meus primeiros contatos com a escrita foram carregados de sentimentos conflitantes. Muitos deles raivosos, tensos. Afinal, o que me colocou pra escrever não foi inspiração mas sim a força da pura obrigação. Era aula de redação e eu precisava passar de ano. Fora essa pressão, me faltariam motivos para me debruçar sobre a escrita. Não encontrava sentido naquilo e, na verdade, em nenhuma outra atividade escolar. Entendia essas demandas como regras de um jogo antiquado e perverso, que eu precisaria respeitar apenas pra não ser punido. Até tinha certa razão. Mas não fosse essa falta de sentido, não teria me deparado com a folha em branco. Atravessado de conflitos, em meio à vontade de gritar contra o mundo, abria-se uma possibilidade: diante de mim uma folha em branco, que eu poderia preencher com o sentido que eu bem entendesse. 

Não fui um bom aluno, como se pode inferir. Esburacadas de desordem, minhas redações recebiam notas medianas. Mas em cada uma eu descobria um refúgio, uma espécie de brecha no sistema. Eu só precisava mostrar uma boa gramática, uma certa noção de desenvolvimento e um pouco de coerência – esta última, a mais difícil de conseguir. Esse mínimo de bom comportamento me daria a nota de aprovação e me livraria das punições morais. Com relutância, aceitava que parte do meu texto teria de ser concedido ao correto. Assim, me sentiria suficientemente acobertado. Era parte do jogo. Em compensação, poderia continuar materializando em texto um espírito clandestino que começava a me ganhar. E a vida foi se tornando um pouco como a Julia de “1984” define: “uma coisa muito simples. Você fica querendo se divertir e ‘eles’, ou seja, o Partido, faz de tudo para evitar que você se divirta. Você faz de tudo para infringir as regras.” Sem ser pego, completaria.

Mesmo que numa dimensão muito pessoal e até mesmo um pouco paranóica, escrever já nasceu um ato de afronta e, porque não, de política. Claro que não a política do social, que mais tarde viria a me tomar de assalto. Mas uma política do jogo, da diplomacia na relação com o adversário. Um jogo de elegância, de disfarces, feito de glórias silenciosas e vitórias sutis. Eles teriam de engolir meu texto iconoclasta, niilista, destruidor de morais, pois estava “bem escrito”, digamos assim. Nisso não havia a mesma força que no malandro, este arquétipo do marginal que se torna liso ao portar certas elegâncias, mas se tratava do mesmo tipo de combate. Poder denunciar o embuste do jogo, ao mesmo tempo que o joga. Estudar o mecanismo simbólico pelo qual a boa gramática torna legítimo qualquer conteúdo. É um lance estético, entende? Se você mostrar que sabe pilotar a linguagem, eles vão ficar impressionados. Mesmo que, no fundo, você não saiba. E nem eles. O que importa é “mostrar que sabe”. 

Felizmente, quando pude me livrar da formalidade escolar e me lançar no ócio desconhecido, amadureci. Conhecendo o mundo e encontrando mundos dentro, descobri os outros sentidos da escrita. Diante do globo capitalista, confirmei: as aparências e o jogo estético são armas das mais poderosas. Por outro lado, aprendi que num mundo feito de matéria e de corpos de gente viva, o conteúdo e os efeitos concretos de um texto importam. Importam a ponto de, na ponta, matar ou morrer. E sabendo disso, você deve escolher uma posição: está com os que sempre morreram ou com os que sempre mataram? Esta lição trouxe um elemento novo pro meu texto, o elemento da luta social. Esta adição, é inegável, conflita com aquilo que até então compunha minha escrita. E até hoje é assim. Mas, para o bem ou para o mal, o elemento estético nunca deixou de ser o núcleo motriz. Mais especificamente, a questão que me impele é esta: qual o poder do belo? Quem define o belo? Nós podemos alterar isto? 

O efeito material e o efeito subjetivo do texto não são coisas totalmente dissociáveis. Hoje eu estou um tanto mais consciente da relação existente entre esses dois elementos, ao ponto de poder afirmar: é delicado. Mas é aí, em direção ao delicado, que vai minha expedição. Na direção do balanço frágil entre luta social e subversão estética. Do contato com a vibração que vem do chão, o sismógrafo traduz o conflito entre o sólido e o volátil. Esse é o grafo que eu quero mimetizar.

século XIX, Índia, anônimo

híbrido

Mas afinal, porque escritos híbridos? Bom, esta palavra tem seu uso mais comum na arena da biologia. Diz-se do indivíduo gerado no cruzamento de espécies diferentes. E daí a linguagem derivou seu uso figurativo, pra qualificar tudo que nasce de um cruzamento heterogêneo. O interessante sobre essa palavra é que, por ser usada na biologia, indica um contexto formado por seres vivos. E o que isso traz de vantajoso? No reino do que é vivo, não faz sentido falar de contrários e nem de idênticos. Só há diferentes. A hibridição não é uma síntese entre duas coisas contrárias, e tampouco é o inverso de uma geração entre iguais. O que ela gera não homogeiniza os dois termos da relação em uma nova unidade. O híbrido manifesta um meio, um novo meio; é um terceiro que carrega qualidades do primeiro e do segundo, sem por isso sê-los. 

No reino da escrita, as espécies são os gêneros textuais. Prosa, poesia, ensaio, artigo, tese, resenha, crítica, etc. E dentro delas, um punhado de subespécies. Cada gênero tem suas qualidades particulares de tamanho, tom, linguagem, interlocutor e propósito, e a combinação destes atributos resulta naquilo que o texto tem de mais concreto: sua efetivação no suporte e o efeito que dali ele terá no mundo, por meio dos/as leitores/as. Assentado esse assunto, já podemos deduzir o que seria um escrito híbrido: um escrito que não se identifica com nenhum dos gêneros textuais, mas que se encontra no entremeio dos mesmos. Na fauna textual, um híbrido exemplar é a prosa-poética. Talvez seja o mais aceito e utilizado. É a mula dos textos, poderíamos dizer. Possui a força explosiva de um cavalo – poesia – com a resistência incansável de um jegue – prosa. 

Não vou inspecionar aqui cada detalhe dessa metáfora, ainda que seja interessante. (O híbrido coloca em questão a oposição entre artificialidade e natureza, questão essa que, em termos de escrita, alimenta uma bela e longa viagem. Mas isto é para um outro momento.) Meu interesse agora é contar o que penso ser a principal causa de meus textos devirem híbridos. E digo: é a qualidade subjetiva presente lá na origem, nas aulas de redação, e que reverbera até hoje. Como disse, a minha escrita nasceu em um contexto de conflito pessoal, de tensão. O mundo pequeno, estreito, delimitado pela escola e pelas relações de poder inerentes, transbordava em regras complicadas e arbitrárias. A maioria delas, não ditas. Para respeitá-las, para agir conforme, era preciso, primeiro, decifrar uma rede complexa e invisível de normas, segundo, domar os impulsos e modelar-se. Mas eu dificilmente conseguia decifrar essas normas, e mesmo quando conseguia, minha vontade era contrária ao modelo. Uma dupla dificuldade – incapacidade de compreensão das normas e também uma afronta inconsequente – foi o signo sob o qual brotou minha escrita. E essa dupla dificuldade reverbera até hoje. Eu ainda peno para adequar meu texto às exigências formais, seja porque me parecem complicadas, seja porque me parecem demasiado arbitrárias.

No entanto, com o passar dos anos, eu soube dar a devida atenção às normas, de modo a poder descobrir razões subjacentes que me provam: não é pura arbitrariedade. Objetivamente falando, na escrita as normas prescrevem a boa gramática e a adequação às formas textuais. Como norma, isso soa apenas como uma tentativa forçada de disciplinar a arte textual. Era assim que eu via. Mas o amadurecimento me proporcionou encontrar um sentido não normativo para a preocupação com a forma. A razão é que tais qualidades promovem a capacidade do texto de ser socializado; sem nenhuma preocupação formal, o texto isola-se em si mesmo. 

Por mais geniais e/ou criativas que sejam as ideias de um/a escritor/a, por mais ousadas as direções que ele/a pretenda tomar em sua escrita, ainda precisa materializá-las num corpo textual e colocá-lo num suporte. Na imaginação, esse corpo textual é um colóide quimérico que pode assumir infinitas formas sem perder sua potência incisiva num suposto leitor. Mas no suporte essa liberdade privada desaparece, dando lugar às limitações do mundo material. Nele, o compartilhamento entre as pessoas de formas textuais definíveis, adequadas aos meios atuais, garante a possibilidade de comunicação. Por isso, é interessante para o/a criador/a textual respeitar as formas e gerar escritos que possuam os atributos formais correspondentes. É poder ser acessado por diversos/as leitores/as, não só aqueles que partilham de suas ligações estéticas. 

Por outro lado, essas formas compartilhadas não são dadas naturalmente, como se uma objetividade última nos dissesse: é assim que as coisas são e devem ser. Há um processo pelo qual se engendram formas aceitáveis e se excluem outras. E a suspeita de que novas formas pudessem surgir residia na minha convicção de que a natureza da escrita não poderia ser tão auto-limitante. Eis que hoje eu sou convicto para afirmar: aquilo que limita e define as formas textuais não é amigo da potencialidade artística e, mais do que isto, se apoia em convenções secretamente arbitrárias, apegadas ao passado antiquado do mundo textual (ocidental). Essa crítica à forma, que hoje eu faço com maior embasamento, pesa muito. E a balança da escrita continua instável, sem render-se a nenhum dos polos.

Uma escrita que ignore ou desconheça completamente a razão das formas textuais convencionais, tende ao isolamento e à privatização. Eu, com minha rebeldia imatura, fiz dos meus textos reféns, condenados ao ensimesmamento. Claro que foi importante experimentar, brincar de palavras, construir um laboratório textual, mas isso raramente produziu pontes com o mundo. Pese-se o fato de que esse isolamento não foi fruto de simples rebeldia; como disse, também era uma honesta incapacidade de entender as normas e formas. Assim, a dificuldade de adestrar a fruição de minha escrita se deve tanto à sua ferocidade plena de justiça, quanto à minha incapacidade técnica. Eu sabia – e sei – que sem uma insubmissão às regras formais não seria possível revelar a arbitrariedade estética que as governa por trás; que muito do que é considerado belo é apenas correto, e vice-versa. Mas é preciso desconstruir o sistema por dentro, infiltrando-se, jogando seu jogo, camuflando a rebeldia com a perspicácia de uma técnica textual que respeita formas. Pois as formas textuais são critérios de visibilidade e legibilidade. Sem elas, o texto, mesmo escrito com sangue e sabedoria, pode tornar-se invisível.

O híbrido é, portanto, uma maneira de balancear, sem equilibrar, esse aparente antagonismo entre a convenção e a invenção. De forma alguma meus textos devém híbridos por uma decisão consciente, baseada em um raciocínio como o que eu consegui destrinchar aqui, neste texto. O hibridismo foi efeito de uma tensão afetiva, emocional e política. Eu ainda sinto a necessidade de desestabilizar os tácitos acordos estéticos que são revestidos de “maneiras certas de escrever”. Mas com o tempo eu fui entendendo que saber usar palavras da moda, respeitar as convenções semânticas e gramaticais, despojar-se de sintaxes experimentais e, principalmente, escrever dentro dos moldes das formas textuais, é uma atividade trabalhosa e nobre, admirável até. Mais do que isto, o estudo que permite sustentar essa atividade também pode alimentar o/a escritor/a com um conhecimento valioso. Pois sem conhecer as espécies aceitas de texto, não seria possível escrever no cruzamento delas. O texto híbrido, habitante da zona limítrofe entre as formas textuais, instiga o/a leitor/a ao estranho e ao mesmo tempo o/a acolhe dentro do familiar. Sem se alienar nem se alinhar ao formal, os escritos híbridos expressam uma tentativa textual de manter a diferença viva, selvagem, mas socializável.

É assim que eu consigo entender grande parte do meu processo de criação textual. Hoje, particularmente, estou me empenhando em trazer meus escritos para formas mais bem definidas. Dar maior tempo e espaço para a etapa da projeção, qualificá-la com planejamento, para que os textos devenham estruturalmente limpos e elegantes. Principalmente, para o que o tamanho do texto, esse atributo dificílimo de controlar, se adeque melhor às situações. Que esse tamanho se equilibre com o combustível da fruição, para nutrir o fôlego do/a leitor/a, tornando o texto interessante o bastante para ser lido até o fim, sem perder as ideias principais. Bom, é o que eu estou tentando fazer ultimamente. Espero que escritore/as possam identificar-se com alguma parte do meu processo. Adoraria escutá-los à esse respeito. No mais, que possamos desafiar o público leitor em direção às bordas do esperado, adentrando juntes nas margens das formas para experimentar coletivamente o fascínio do desconhecido. Oxalá a gente possa participar de uma transformação da norma estética, quem sabe até desestabilizar a beleza.

31/08/21

na sociedade do controle: o deus micro-chip

 


O silício é a nova onda. Todo mundo está atrás desse hype. O micro-chip como objeto-símbolo da glória. O sucesso. “Trabalhai com o silício e poderás reduzir infinitamente o tempo entre o objetivo e o resultado.” Foi isto que a vida me ensinou. Você consegue imaginar? Imediatamente, querer e conseguir! Isso não seria a experiência de dEUs?

Mas eu não me sinto assim. Meus amigos estão se suicidando e os que não conheço de perto estão sendo assassinados por suicidas. O tempo de fato se reduz, mas não para de ficar menor. Então, essa glória de silício… Pra quem ela funciona? Talvez estejamos redescobrindo que o ser humano foi mesmo uma invenção divina. Cordeirinhos lógicos.

Deus quer e deus faz acontecer. Ele vai descer à Terra, gozar de existência sólida, incorporar-se, sem por isso deixar que as dificuldades da matéria impeçam o livre exercício de sua existência divina. Ele descerá e continuará onipotente. Mas qual será o corpo que assumirá? Nós, o pessoal do círculo de profanos sabotadores, ficamos sabendo que a glória do silício está reservada para um avatar não-humano. O paraíso sobre a Terra está próximo, muito próximo de acontecer. Mas nós não vamos experienciar isto, porque está para além dos sentidos, como já foi repetido tantas vezes.

É possível, no entanto, ter um vislumbre. Vocês já devem ter visto as imagens aéreas da cidade e das zonas rurais. (O satélite tem a visão dos anjos, porque pode ver os movimentos de deus na Terra.) Sim, você está vendo um grande chip. Tudo está medido, toda a superfície terrestre, esquadrinhada. Não há mais um “fora”. Agora falta apenas trabalhar os sólidos que ainda apresentam alguma irregularidade. Aos poucos tudo vai assumindo a forma de uma plano cartesiano bidimensional. A altura? É apenas a possibilidade de se empilharem os planos. Você pensava que a imagem de deus fosse uma coisa mais bela, não é mesmo?

Podemos perceber que tudo é uma questão de asfaltar, de se expandirem as vias, de se multiplicarem – controladamente – os canais por onde passa a energia. Que energia? Ora, são os elétrons, finalmente controlados. Após dois milênios de domesticação da Terra, o impulso elétrico, o sutil, a primeira densificação material da energia, está controlado. Graças ao trabalho de bilhões de pessoas ao longo dos séculos. Mas vejam, isto já era novidade no século XX. A onda agora é controlar a energia em seu estado ainda imaterial, para que ela também possa ser canalizada pelas vias do silício. Estou falando do desejo. Sim, o impulso, o querer, a vontade, dê o nome que quiser, é essa dimensão imaterial que está se conseguindo canalizar. Fora isto não haverá mais nada.

Então a cena aí, para contemplarmos. O chip como modo de existência se materializando. Exemplo: a cidade. Ela é também um corpo binário, de vias e chaves. Vias por onde passamos – sem escolha, pois sempre há a smartness de um phone para nos fornecer o caminho mais rápido. O objetivo é chegar o mais rápido possível num lugar e ativar sua função, chavinha no ON. Entretenimento, trabalho. Ativa-se, cumpre-se o objetivo, desativa-se. Chavinha no OFF. A vida para nós humanos parece ter sido reduzida ao grau mínimo do movimento, o binarismo da diferença: o zero/um. Tudo é uma questão de verdadeiro ou falso. “Meu amigo: ou você está dentro da identidade que eu construí com as informações dadas, ou você simplesmente não existe. Não tem erro.” É isso que pensamos quando olhamos no espelho – seja ele opaco ou transparente.  Sim, para nós humanos não há muita liberdade, onipotência, porque nós somos apenas os peões, os elétrons.

– Zero / um. Ou se está na unidade, onde todo o universo está pleno, preenchido de sentido, sem sobras, sem espaço para criação; ou se está no absoluto vazio, na completa falta de sentido, existência sentida como pura destruição, pura morte.
– Ora, mas isto é um exagero! É possível vivenciar o meio! Estamos certos de que vivemos o meio como algo real.
-Evidentemente ainda existem nuances, ainda existe o possível, na medida em que conseguimos subverter a linearidade fixa das vias e recortar caminhos, rabiscar. Na medida em que os lugares deixarem de existir apenas para uma função. Na medida em que… nos perdemos em sombras confusas e… não há nem coragem para o suicídio e tampouco confiança para berrar na rua.
-Só que tudo isto é loucura, é clichê, é obscurantismo! Coisa de personagem de filme cult. Veja, a onda é o silício. Quem não está gozando desse hype só pode ficar com esse tom cinzento mesmo. Venha, deixa de zigue-zague e venha experimentar dEUs!

– Não é mais questão de olhar uma pedra bruta e já logo pensar em seu estado objetificado e funcional, ignorando toda singularidade, textura, diferença irredutível.
– Quem pensa essas coisas desse jeito? Você parece considerar que esse tipo de olhar é cultural, como se ele não fosse a natureza humana. Ora, pare com bobagens. Olhe ao seu redor: a tal pedra já não é bruta. É cimento, cascalho, mármore, arenito. A calçada tem linhas e se divide claramente da rua. A árvore tem seu lugar, o canteiro denota. Tem a praça, que é para o laser, há bancos para se sentar, e o lugar de cada indivíduo na sociedade, visível, tudo bem visível. Tudo dentro do globo tem identidade, endereço, de modo que a mente não precisa mais perder tempo em confusão. Se antes era necessário seres humanos para nos alinharem no caminho do controle, hoje a própria paisagem já se encarrega disso. O mundo funciona. O mundo funciona!

Sentiu essa pegada fria? Sente esse espírito terminando sua existência, fazendo os retoques finais, o acabamento da obra. A obra do silício. Tudo passa pelo seu crivo técnico. O corpo, essa imperfeição de carne ambulante, é errante demais para os trabalhos divinos. Para os resultados, confiamos mais na inteligência nanométrica de um computador, aquela que pode selecionar, recortar, copiar com perfeição; aquela com a qual o ser goza da velocidade da luz. O projeto é todo feito no software.
E a rua já está ficando linda! s2
Vê, as lojinhas tem fachadas metálicas com pintura homogênea, os letreiros, as placas, os logotipos, são impressões 3D: materializações perfeitas do projeto. O mundo material se igualará ao virtual! A cidade está avançando prodigiosamente para alcançar a funcionalidade da tela (dos nossos olhos), nossos smartphones. As funções básicas funcionam discretamente, é tudo interativo, cada opção é bem clara e definida pelo design digital, e podemos nos divertir com aplicações. Vai dizer que o site da avenida paulista não é interativo?

Mas é claro, nem todos tem endereço. Nem todas tem sua identidade… identificada. Nem mesmo todos tem smartphones. Nem tampouco o privilégio da leitura. Como já foi dito, o paraíso ainda não chegou. Mas é questão de tempo. É só você não olhar muito para isso. Não olhe o caos. Aquela viela tortuosa, escura, que te chama, cheia de pessoalidade, como num sonho? Não olhe. Aqueles rostos amassados pelo pó e pelo tempo, catando a possibilidade do Sol nascer em sacos de lixo? Não olhe. Ou olhe. É um ou zero. Se o que você quer é desgrenhar das esteiras, pode cair. Se o que você deseja é o curto-circuito, vá em frente. A loucura, o clichê, o obscurantismo dos personagens de filme cult. Mas todos esses erros de rua que você advoga por aí, com seus olhos indiscretos, serão reparados na próxima atualização. Serão eliminados porque não funcionam. E você vai sobrar no limbo, cheio de amigos suicidas.
Ainda há tempo para embarcar na onda. Controle sua vida.

Mas quem é você? Não há ninguém aqui. Estou falando comigo mesmo. Com quem estou conversando? Estou confuso. Talvez esteja possuído. Como posso ter certeza de que controlo minhas ações? Como disse, faço parte de profanos sabotadores, não sou de silício e não quero que o paraíso se instale definitivamente sobre a Terra! Dela eu quero sentir as nuances, os relevos, as diferenças de temperatura. Quero experimentar os sentidos de cada paisagem. Vejo na pedra bruta uma forma ainda não geométrica, de superfície imensurável… Estou louco. Gostaria que alguém me ajudasse a saber: como posso ter certeza de que controlo minhas ações, de que estou ajudando a causa? Onde acaba o que sou EU e começa a cidade, as máquinas, o ônibus, o smartphone? Quais são os limites entre entre entre essas coisas? Me disseram que o limite quem dá é a pessoa. Mas não sei onde fazer esse corte. Estou tomado por um desejo de ter certeza. Um desejo que me impede. Vou em direção aos fatos, então. O que de fato eu posso fazer?

Pés no chão, experimento caminhar pela rua. Posso cruzar antes do sinal abrir? Posso ignorar os limites da calçada, invadir o espaço dos carros? Posso sair à noite, sentar na sarjeta e brincar com palavras? Sentar no degrau de uma loja fechada e apoiar minhas costas naqueles portões de aço pixados? Posso olhar os pixos, demorar-me neles e apreciá-los assim, desse jeito, sem entendê-los? Nesse momento um vento sopra pelas folhas. Posso tudo isso. Mas não por muitos minutos. A hora existe e já estou pensando: o que vou fazer com essa experiência? Qual a finalidade disso? As vozes me dizem que é coisa de deixar acontecer, sentir, sem a certeza de um propósito. Então continuo a vida, vou atrás do sonho, pego metrô. Vigoroso, inspiro esse ar. Vem a náusea do metrô. Colado em um monte de gente colada. Estamos mais próximos do que eu jamais fiquei de muitas pessoas que tenho amizade. Aqui o toque precisa ser esvaziado de sentido. Aqui tudo ao redor vira… massa humana. Inferno! Parece que a homogeneização se apodera de mim, o plano cartesiano, o espírito do silício… Mas não. Eu posso, eu posso, eu posso. E o que eu faço é me demorar, reparar em cada rosto, cada jeitinho, cada estilo. Só que cada estilo faz aparecer na minha cabeça um tipo de identidade. Isso aumenta minha náusea. Assim como as televisões penduradas no teto do vagão. Ah, elas são difíceis de ignorar, com sua luz forte e colorida. Colorido mesmo, de chegar a cansar a vista, são aqueles cartazes que ficam nas paredes das estações. Porque estou olhando pra isso?! Eu realmente não controlo: quando elas mudam, de uma marca para outra, sempre reparo! E mais: examino a propaganda nova e sinto um alívio profundo. Ah, eu precisava disso! Mas não dá tempo de sentir. Nem a náusea nem o alívio. O tempo é curto e eu preciso pensar e programar o tempo. O tempo que vai levar para chegar no lugar, o tempo que vai levar para realizar o sonho, o tempo dos encontros, o tempo das desprogramações, enfim, programar o tempo. Preciso? Quero. Posso? Talvez… mas tudo isso depende da velocidade do transporte público.

Quero sentar na sarjeta novamente, sentir o meio-fio. Entrar na viela, reparar na aspereza do muro, as nuances, as irregularidades expressivas que tanto me provocam e assim acabam realmente direcionando o sentido torto da minha vida. Estou a deriva. Quero pensar sobre a cidade, mesmo não sabendo o que sou, onde começo e onde acaba o mundo. Parece que esse pensar é tanto meu quanto de tudo isso que me atravessa. Talvez eu seja a própria cidade pensando sobre a cidade.

Pode ser que a superfície terrestre não se transforme num micro-chip planetário. Como se pode ver à partir das experiências pessoais, em que o meio parece invadir e brotar no meio do campo consciente, a ação pode não ser mesmo de deus. É possível que não aconteça a sua materialização definitiva pelo silício, com sua onipotência, sua capacidade de transformar instantaneamente a vontade em realização. Mas me parece que é isso que se deseja, quando o ser humano se afirma como Deus na Terra – seja no discurso eclesiástico, seja no científico. O antropocentrismo é a certeza de que a experiência da espécie humana (seja lá o que isso for), é a consciência cósmica iluminando a escuridão da matéria. Mas quem decidiu os limites? Onde acaba o consciente e começa o inconsciente? Pensa-se no silício como uma ferramenta controlada. Mas é possível e até fácil, observando o estado atual das coisas, falar de como esse mesmo silício se utiliza de nós, de como nos tornamos ferramenta da ferramenta. É louco né? Ficou difícil falar de controle agora.
Nos parece vital trazer uma recordação: o limite quem dá é a pessoa. E esse limite, esse corte, é uma ação. Uma escolha a ser tomada e um erro a ser vivido. Mas mesmo que a consciência não se apodere desse corte, ele está se dando continuamente, a cada instante, e é essa a grande onda.

A verdade é que deseja-se esse poder absoluto. Existe uma vontade de poder. E, veja, essa frase tem uma força gravitacional tremenda, como se fosse algo do mais profundo, como se fosse um fundamento. Mas se esquece que é uma escolha, ainda. Podemos preferir ao poder, a criação. Ainda há o desejo de criação. Mas acontece que a criação se dá mesmo no encontro com o mistério. A matéria, escura, faz a luz curvar-se. Se estas fendas cósmicas forem eliminadas, o acontecimento será aprisionado no infinito.

Para terminar falando em modos de existência, ainda existe o da Terra. Uma vida. Uma natureza povoada de outras, que não se encerra numa forma. É algo que perfura os céus com o incontrolável. Algo como o desejo, uma força que provoca o espaço; instauração sólida da incerteza. Isto ainda existe e o controle não se tornará absoluto. A menos que este poder seja o objeto do nosso desejo. Mas não é.

contra o fim

 


A questão é que o chip não provoca curto circuitos por sua natureza funcional. É a natureza que provoca curtos-circuitos no chip. Este, por sua vez, ao perder o controle do silício, é preenchido novamente de corpo e de magia. E é assim que esperamos restabelecer o paganismo, finalmente. Criar um obstáculo ao fim. Pois o fim não para de se expandir.

A cidade não para de crescer porque é deus. As ruas vão se estender até o fim do horizonte, o piche vencerá o pixo e vai comer nossas peles até que não sobre mais quem perceba a cidade virando, virando ela mesma, ela mesma um messias ícone, um avatar pós-humano, perfeito e resolvido. Nada de nuances; reinado último, universo liso, liso como uma televisão.

Moedas de metal eram fabricadas por máquinas de metal, mas apenas enquanto a moeda precisava ter aparência. Hoje sua presença vibra por todos os cantos, progredindo pelos códigos, em direção à totalidade. Quando ela for puro espírito, quando a moeda transcender a matéria e libertar-se das reencarnações comerciais, dissolvendo-se em éter puro, destrinchando os sentidos, descansará o neon em nirvana químico.

Fileiras de corpos humanos, nas casas da 21ª potência, entregam seus rostos ao número redentor. Quase inúmeras, porém contáveis expressões de peles e ossos, cada uma com sua tonalidade e texturas específicas, são sacrificadas pela bênção da globalização, processo unívoco de unção do corpo pecaminoso que se chamava Terra. Espera-se assim lavar o mundo do E(r)ros. O erro do Sol vai ser devidamente reparado e os planetas serão higienizados na mais divina pureza. Não restará nada além do Todo.

Mas a crueldade dessa anti-força, esse deus-formal imaterial, é tão imensurável, que escapa ao próprio infinito de suas capacidades informacionais. E este é o seu único erro. Desta crueldade não se pode conter o último gemido. Sobra, doença ou delírio, sobra uma sensação.

Entre as partes, no vão que se esquece entre os prédios e os empreendedores, existe um espaço ainda indecifrado. Nos interstícios desse robô persiste um incalculável. Buracos negros nos cantos da sala, nos rincões do diadia. Há uma fricção que degenera e desafina o coro dos contentes. Nestes desterritórios, sobram amontoados de coisas vivas, ruminando a si próprias, misturando suas atribuições. Tudo que elas têm, elas fundem. Fundem seus órgãos, seus cartões de crédito, suas embalagens coloridas, o plástico, o cimento e a carne, fundem-se. Experiência devindo eco de uma força ainda perplexa, eco de um tempo acontecedor.

Nós que necessitamos do paganismo nos encontramos e nos aliamos a estas sobras, produzindo uma espécie de feitiçaria local, que distorce o tempo e o espaço metrificados. Produzimos micro-diferenças, despojando-nos de nós mesmos. Ainda que muitíssimo sutis e despercebidas, estas crias da qual participamos se multiplicam através de todo o espectro da existência presente. Não louvam líder nem ídolo passado, não buscam salvação objetiva, são apenas presença. Se alimentam do hoje em sua concretude mais comum e espessa, para prosseguir desejando, sem nunca se satisfazer, tampouco se castrar. Assim, não poderiam ser de outro modo que não cyber-animais, zonas-críticas, trabalhando e transando em seus computadores ritualísticos.

Foi dado o nome de curto-circuito a essas frestas onde o até lixo é gente. Nosso paganismo contra a sacralização da humanidade, essa que excluiu da vida todos os seres diferentes. Nossa estratégia são faíscas de breve duração, delírios organo-metálicos, para intensificar a crise. A crise na qual o semicondutor, signo do controle, se aquece demais, ganhando corpo, erro e vida. Este cântico virulento ainda geme em meio aos comas de silício que projetam a cidade. E para que aconteça algo diferente do previsto, será preciso sintetizar um horizonte entre o antes e o depois

de insônia

 

Ele explica que o sono é produzido ou quando as partículas de alma espalhadas pelo corpo se concentram, ou quando elas se dispersam e escapam pelos poros.

Diógenes Laércio, “Carta de Epicuro a Heródoto”

*

Não conseguir dormir não significa nada. Ninguém consegue. As pessoas só se deixam largar. É um abandono de remos. Ruim mesmo é não ser aceito pelo sono. É largar os remos mas não haver metáfora de mar, e descobrir-se deitado na cama, numa posição um pouco torta, sem símbolos e sem remos. Não há mar da vida que te carregue a suposta jangada. Tal imagem é um prego mental, duro na cabeça, ela, essa sim, a rolar irregular pelo travesseiro. Ao sentir a estranheza do pescoço, o corpo aparece totalmente concreto, impondo a vida sem lirismo. Não há nada mais distante que o mar. Força maior? Eu não sinto força maior do que a própria eletricidade nervosa. Minha identidade poderia ser, toda ela, medida em watts.


Eu ali na cama, pensando e pensando. Presumindo que as pessoas dormem porque alcançam um chão da subjetividade, um solo interno. Uma espécie de piso, impossível e ao mesmo tempo muito prático, visto que dormir é das coisas vitais. Pensava: “O desejo ganha corpo pelos signos, pelos símbolos, pelas histórias, memórias, esses são seus órgãos inorgânicos, com os quais faz um corpo! Corpo humano, corpo cidade, corpo palavra, animal, entidade.” Corpo jangada-no-mar, diria agora. “O desejo tem toda uma outra diversidade de tecidos e vísceras um tanto misteriosas. Morfeu deve ser um deus com mãos feitas de sonho e sangue, tão delicadas, que… que consegue metê-las na nossa cabeça!, sim!, e com a ponta dos dedos, transfere a consciência para esse nosso outro corpo.” Faz sentido. Esse poder só seria possível com uma delicadeza suprema, visto que a distância entre o sono e a vigília é menor do que o diâmetro de um elétron.

Certo. Morfeu chega para autorizar a passagem e efetuar a transferência, mas o mundo do sonho é por nossa conta. E a construção é penosa. Sua arquitetura que parodia a física, suas leis lânguidas, seus universos holográficos… toda essa construção é de nossa responsabilidade. E naquela noite, não havia sinais dessa outra física, desse outro corpo.
Mesmo com o pensamento cheio de metáforas, imaginações até bem precisas, era tudo muito abarrotado de palavras. E não havia espaço para despejar em mim nem uma gota de mar ou de chão. Eu estava ali, necessariamente ali, naquela noite, naquele quarto, naquela cama, com o lençol amassado e entrelaçado a mim daquela exata maneira. Coisas que minha pele e minha mente faziam questão de deixar claro. Tudo, tudo tão claro, tão perceptível… A luz da mente é sem dúvida mais clara do que o Sol. E como isso é infernal na noite.

Eu pensava profundamente, como uma equipe de investigação policial vasculha uma casa, revirando tudo, anotando detalhes, fotografando o pequeno e analisando o grande. Não havia partes incômodas da memória que eu não tivesse trazido à tona. Nem tampouco deixei de lado padrões e hábitos. Havia deles um dossiê. A certo ponto, já havia dezenas de explicações para o crime. Eu havia atentado contra a minha saúde mental e a insônia seria a minha pena. Comer açúcar a tal hora, não ter carinho de noite, concentrar-se em telas digitais… estas eram pistas indispensáveis, mas que se ligavam à mais importante de todas: eu não conseguia parar de pensar. Pois é pensando sobre a própria compulsão de pensar, que eu retirava uma nova explicação a cada segundo. Pensando sobre pensar sobre a compulsão de pensar, e por aí vai, exponencialmente, até o pensamento deixar de produzir sentido para ser apenas uma outra forma de eletricidade. Outra tela digital.

O sono não me aceitaria. Morfeu não encontraria o corpo do desejo, não encontraria um mundo onírico, fresco: tudo já tinha sido mastigado pela luz da consciência. Ruminava com olhos na língua.


A madrugada avançava muito rápido. O tempo tinha uma velocidade desmedida. Não por uma desatenção minha ao tempo – dessas delícias que fazem das horas minutos. Não, não havia desatenção. Eu era pura diligência. Cada fração de segundo era militarmente apreendida pela consciência. A causa da alta velocidade era mais uma questão de os milésimos estarem ainda mais curtos, escassos, como se a ampulheta do tempo estivesse vazando. Não, não havia desatenção ao tempo; pelo contrário, eu me atentava demasiadamente. O corpo jorrava em si mesmo. A percepção tinha a superfície de contato de uma árvore, mas sem estrutura alguma. Pela voracidade com que apreendia cada micromovimento, pela impossibilidade de dormir e mesmo de relaxar, a sensação poderia ser análoga a estar sendo arrastado pela correnteza de um rio voraz. A diferença é que o desfecho fatal não seria a morte por afogamento, mas sim a própria manhã fustigando o quarto, acabando enfim com todas as possibilidades de descanso e me lançando novamente ao imperativo da consciência. Não poderia deixar que amanhecesse. Precisava me livrar daquela aceleração. Mas como? Sem tornar-me ainda mais consciente?

Se havia alguma necessidade, era a de me arrancar de onde eu estava, de como eu estava. Por isso, a analogia de ser arrastado pelo rio voraz não ilustra algo atraente para Morfeu. Não era uma questão de conseguir deixar-se levar. Pelo contrário. Eu já estava sendo levado pelo momento. Mas, paradoxalmente, era um momento que eu mesmo construía, segundo a segundo. Eu queria era ter algum controle, mas era o controle que me controlava. Como tirar a não-ação da ação? O desejo de modificar algo que se vive: tem ele a capacidade de, por si mesmo, deixar de existir?!


Loucura. Por que perder tempo com esses paradoxos? Isso sim é uma perturbação. E que desperdício de energia! Pense economicamente, haja racionalmente. Tome as decisões corretas agora. Não, exatamente agora. Você não percebe que está deixando passar a oportunidade? O momento de agir é precisamente agora. Vamos! Haja! Decida!

Mas já estou decidindo. Observando a mente e seu sequenciamento de objetos, tenho a clara impressão de uma tomada de decisões em alta frequência. Tantas decisões por segundo que não consigo discernir se estas se dão uma a uma ou continuamente. E mesmo fora do intelecto, quando tentava me ater às percepções do corpo, a questão do foco é totalmente decisória. Focar na respiração, respirar. Focar na imaginação, imaginar. A questão é que, quando se conta com sua estabilidade para salvar a própria sanidade, tanto os objetos do pensamento quanto da percepção são avassaladores. Ganham importância, arrombam a porta de entrada e decidem seus próprios contornos. A objetos do meu pensamento, as partes do meu corpo, “minhas posses”, todas, me venciam. Decidir sobre eles era na verdade sofrer a disputa deles sobre mim. Melhor mesmo seria não decidir nada. Não suprimir nem afrouxar, não controlar nada e apenas deixar acontecer. Mas como se decide isso? Era uma questão de sorte: “tomara que aconteça…”. Tentei me entregar para algo que não existia, pois nada era maior do que eu.

As horas passavam. O cuco, que canta a cada meia hora, enfiava essa informação. Já estava em dúvida sobre a própria possibilidade geral de dormir. “Como é paradoxal. O sono só acontece. Nós não nos lembramos nem mesmo dos momentos anteriores aos momentos anteriores… A gente deixa de existir por uns momentos. Isso é impossível, impensável.”

Não cabe mais perguntar qual seria a força maior à qual eu deveria me render para deixar acontecer o sono. Eu já estava rendido. Naquela noite, era nítida a diferença entre o ato de rendição e a condição de rendido. Algo aliado à vigília estava subjugando tudo que se aliava ao sono. E, no meio disso, não havia “eu”. Não é que “eu” estava querendo dormir e algo “em mim” não deixava. Não havia sujeito. A sensação das ondas elétricas percorrendo o corpo sem direção, o processo mental maquínico e acelerado, a dialética quântica na velocidade da luz… Era absurdo. Não havia sujeito para estabelecer seus objetos. Não havia ordem, contornos, linearidade ou qualquer consistência subjacente às coisas. E tudo, as palavras e os sons, eram todas “coisas”. Um turbilhão de estímulos que jorrava desde tudo, desde a pele, desde a sopa elétrica nos órgãos, até mesmo desde as palavras, de seus sentidos e seus sons. A palavra “eu” era só uma percepção violenta, uma válvula que liberava a passagem de densos amontoados de coisas. “Eu”, o mundo, as ideias, as reflexões… todas eram coisas “em si”; a existência era inteiramente material. Não apenas Deus estava morto, mas o próprio sentido.

Um totalitarismo da matéria, que se intensificava e preenchia tudo de física – desde as ondas até os corpos. Se até os pensamentos mais elaborados pareciam acontecer sem nenhuma relação com um “eu”, é possível pensar que isso, esse “eu”, estava morrendo. Era uma experiência de morte. Os pensamentos eram fenômenos tão significativos quanto a gravidade ou a ondulatória. É claro que isso é científico, filosófico, mas não fazia sentido. Entender não ajudava a fazer sentido. Algo pensava sobre si, algo duvidava da própria existência: o cogito estava lá e realmente existia. Mas isso não significava nada. O pensamento era apenas a parte mais sofisticada, fina e delicada da matéria. Uma pérola do evolucionismo aleatório, sem testemunhos de sua “beleza”. O organismo e o sistema nervoso em funcionamento, como puro produto do encontro fortuito de acasos, combinações peculiares de tempo e de espaço. A morte pelo real.

Está certo que, de algum lugar, algo precisa falar no lugar de ser vivo. Algo tem que ser estranho nessa dimensão material. Algo necessário, como era necessária a intervenção de um demiurgo aos antigos, como era necessário o milagre cristão a um mundo dominado pelos desejos, tão necessário quanto a existência de alguma subjetividade num universo amoral, (des)controlado pela causalidade. Se é o que chamamos de alma ou de espírito, eu não sei, mas era isso que me faltava. Era o caso mesmo de meu corpo estar possuído.

Parece contraditório, visto que eu falava até agora de um preenchimento absoluto. Mas é isso que estou chamando de possessão. E o que a alma faz no corpo é justamente criar um espaço. Abrir um vácuo, um vazio, uma obscuridade intransponível. Se a alma, pensada como necessidade, é algo de bom, é pelo fato de que ela despossui o corpo, criando a liberdade. Que é impossível, mas existe.

Num paroxismo da desilusão, o “eu” parecia estar interditado. Dominado pela capacidade de apreender a existência como ela é, meu corpo estava possuído por ela, preenchido de percepção e lógica. Seria o momento da intervenção divina? Ainda que fosse, pensei, não deixaria de ser um mecanismo interior à matéria.

Então, feroz e inconsequente, surgiu a necessidade de recriar a fenda. A alma, o espírito ou qualquer coisa que possa ser relacionado com a vida em liberdade – força estranha, indeterminável – iniciava seu processo de ruptura e desapropriação. Desde a sensação, passando pela linguagem, restabelecendo o sentimento e finalmente reconstituindo o espaço existencial de um sujeito, essa coisa que sente que pensa que escolhe.

Sentia uma alforria progressiva dos elétrons em meus nervos. Do nível do elétron ao átomo, do atômico ao molecular, do molecular ao molar, aos tecidos orgânicos e assim por diante. Cada escala apresentava uma barreira ontológica sendo derrubada por essa força impossível. A respeito das prováveis imagens que “derrubada de barreiras” pode evocar, cabe dizer: não se tratava de algo belo, glorioso ou
triunfal. Nada nessa retomada de mim tinha modos heroicos. Era mais como uma monstruosidade. A alma era uma besta tão inconsciente quanto mágica. Um animal incorpóreo faminto por realidade.

Mais impensável que seja, era como se estivesse reestabelecendo o imaterial, e para isso, delimitando uma nova fronteira entre esse reino e o da matéria. Em resposta a esses movimentos, o corpo começou a sacudir. Como que querendo se livrar de uma dor impregnada na própria percepção de si, eu me sacudia. Errático, como um cachorro quando molhado. Sem nenhuma delicadeza ou elegância, me apropriava da minha própria força, forçando-a a me pertencer. Fazia me existir, mesmo que não houvesse nenhuma lógica nisso.

Mas é possível dizer: a diferença estava em deixar de procurar “focos” para realmente agir sobre pontos do corpo. Em vez de perceber minha perna, eu a mexia. Apertava os punhos, em vez de constatá-los. Me retorcia, em vez de ser dominado pela obrigação de abandonar-se. Tudo se traduziu numa tentativa de agarrar coisas como se pudesse arrancá-las. Sentir o limite ósseo, a dureza dos dedos, das unhas, senti-las raspando nos tecidos lisos da cama; esticava meu pescoço, levantava o tronco com as pernas e apoiava o peso do corpo na minha cabeça. Mais de uma vez, até que estas coisas passavam a desenhar contornos, limites. A dor que existia para aquele corpo, passava a doer para alguém.

Antes desse momento, ao longo da noite, as palavras haviam passado voando pela minha mente, como nuvens de pássaros incomunicáveis que se chocam violentamente uns com os outros; o pensamento acontecia afirmando e negando instantaneamente tudo. Mas ao me sentir, depois de tanto tempo, responsável pelo meu próprio movimento, as palavras se reorganizaram em formas simples, diretas e sólidas. Surgiram frases como “eu quero sair daqui”, “não quero mais viver isso”, “não aguento, não aguento passar por isso”. Quando eu percebi que estava pensando estas frases, elas não pareciam mais criaturas aladas autônomas, mas antes, sentia que elas realmente reverberavam de acordo com as vibrações da minha dor. Havia um princípio de coesão. Meu corpo, que até então estava completamente desconexo, como entulho, como um aglomerado de objetos incomunicáveis que atritavam aleatoriamente entre si, engendrou, não sei de onde, uma estrutura. Suas partes começaram a estabelecer um tipo de comunicação, até chegar a formar acordos e alianças rudimentares. Eu consegui sentir isso com tanta nitidez! Foi aí que eu vivi o primeiro sentimento em muitas horas, para além da dor: estava triste. Reencontrado comigo, percebi-me num estado do qual a tristeza era substância e não representação.

E já não importava dormir. Aceitei a luz do céu que, projetando os contornos da árvore sobre janela, já anunciava a manhã. Essa luz me confirmou um fato precisamente triste e um pouco assustador. Que algo intimamente meu mas que não era eu, precisamente isso, tinha impedido que eu conseguisse ter uma noite de sono. Me privou do sono, coisa tão vital que nem soberanos negam a seus súditos. Ai, a luz e seus anúncios horríveis! Diante do que tinha acabado de acontecer, eu senti a mais profunda vontade de chorar. E não chorei. Antes eu berrei, urrei, gemi. Quis afastar o medo. Durante vinte minutos, explorei todas as minhas energias pra conseguir emitir os sons mais insignificantes possíveis, como que para garantir, da maneira mais agressiva, que eu tinha
vontade própria. Fiz isso até a garganta começar a doer agudamente. E eu sabia: essa dor só podia ter sido provocada por mim. Uma espécie de satisfação autoritária me percorreu, e logo em seguida percebi que estava esgotado.

David Schab, Morning coffee, 2019

Percebendo que não existia mais nenhuma energia disponível, eu senti um alívio gelado. Um vento inexistente parecia assoprar nas paredes internas de meu corpo esvaziado, produzindo uma sensação impossível de frescor escuro. Esse vazio estranho, pensei, não conseguirei descrever a ninguém. Nem palavra nem gesto conseguirão comunicar isso. Só a mim coube a dimensão desse sofrimento. E só a mim, também, caberá o cuidado correspondente. Então, fui acometido pela auspiciosa sensação de ter acabado de conhecer alguém totalmente estranho. Não sei do que se tratava isso, só sei que, depois de sentí-lo, finalmente pude chorar. Por outros vinte minutos, apoiado nas pernas dobradas, chorei como uma criança, até cair deitado. Então, dormi – não muito tempo depois, eu acho.

04/08/21

rostos e outros brinquedos

 

Quem me dá resposta?
Quem me dá um ouvido?
Quem me dá um rosto
que se afeta ao ter
outro rosto em frente
que se afeta ao ser,
simplesmente?

Que se afeta ao ser?

17/04/21

“As Cidades Invisíveis” e um alívio no confinamento

 

Eu gostaria de agradecer esse livro por ter me salvado de pouquinho em pouquinho nessas últimas semanas. Porque as coisas que gosto são aquelas nas quais eu me demoro. Tive em mãos essa edição de 1990 da Companhia das letras — 150 páginas bem ralinhas. As Cidades Invisíveis são um livro bem enxuto, de modo que eu poderia ter lido em poucos dias. Mas isso teria sido imprudente. Emergindo dum mar de ansiedade pandêmica, surgia a necessidade de saborear com lentidão. Desde as primeiras páginas, já sentia que era preciso passear vagarosamente por cada uma das cidades-pensamento de Calvino. Como uma criança que, com o corpo, mastiga um lugar: ela brinca com cada elemento, de todos os jeitos possíveis, tecendo, gesto após gesto, uma duração. Pedaço por pedaço, ângulo por ângulo, uma demora. Tal é o tipo de transa que se tem com aquilo que se gosta.

Eu acredito que existam caminhões de críticas brilhantes e merecidas sobre esse livro, que revelem o manancial filosófico, arquitetônico, psicológico e semiótico que jaz sob suas páginas. E apostaria que, virtualmente, ainda há muito mais a ser desdobrado. Eu, no entanto, sinto o desejo de destacar seus méritos “baixos”. Chamar a atenção pra potência que esse livro tem de implantar em nós um cuidado erótico. De alterar nossa fisiologia e colocá-la sob o signo de uma “vontade de contrapoder”, para incitar Nietzsche. Operou-se no leitor uma sutil sabotagem que se traduziu em um fazer-querer ser vencido pelo texto, fazer-tornar-se recepção. Um encantamento, uma apresentação que desarma.

A composição extravagante que justapõe cidades-pensamento com incursões narrativas, nas quais um soberano e um sábio se interpenetram ao sabor do ópio, é sem dúvida uma construção hipnotizante. Mas tão estranha! Uma máquina tão singular quanto um relógio que faz o tempo sumir, contato que continuemos mirando seus ponteiros. Essa estranheza da disposição formal é tão penetrante, perturbadora e sedutora, que me faz pensar em alguns rituais animais de dança e cópula. Efetividade visual-formal que talvez se compare à poesia concreta ou ao teatro da crueldade de Artaud. Contudo, em forma de… prosa? E, imagina, toda essa gestualidade, essa festa dos sentidos, acontecendo num livro que é de fato um tanto cerebral. Mas, é assim mesmo. Nada menos do que um uso mágico da erudição. Calvino faz literatura com filosofia e faz filosofia com tijolos, barro, aço fundido, pedra-sabão, mármore, cimento e com toda a materialidade própria de um inesgotável vocabulário de engenharia arcaica e arquitetura. E o que é a arquitetura senão essa arte que faz desejar ser vencido? A manifestação técnica de uma busca peculiar pela liberdade, pois se dá por meio da delimitação do espaço e do tempo. Diria até: ergue-se o opaco para fender o horizonte em nossos corpos. Mas com um detalhe: tal agir é um silencioso agir-de-pedras, um ato solidificado que triunfa sutilmente, na medida em que não levanta a suspeita da coerção, do desrespeito e da dominação.

Nesse sentido, me deparei com a obra de um arquiteto da liberdade — o que talvez seja um paradoxo. Ao erguer paços, jardins, ruas, moradias, bairros e os mais variados sólidos do pensamento, Calvino me colocou pra caminhar. Uma verdadeira mobilização pelo amparo. Talvez seja esse aspecto do livro, propriamente arquitetônico, que me faz querer agradecê-lo. Ele tornou possível um hiato no meu confinamento, abriu um interstício na imobilidade, que eu podia aumentar indefinidamente, contanto que eu continuasse às voltas com cada cidade. E agora, ao terminar de lê-lo, percebo ter me esforçado, por puro desejo, para que o processo fosse o mais longo possível. Em meu corpo, sinto a satisfatória marca de um passeio, prolongado até o alívio da minha carência por encontros.

As Cidades Invisíveis abrem os portões de uma espécie de assentamento mágico, aos modos de um convite irresistível que provocou em mim o movimento de uma viagem indeterminada, em direção aos confins do pensamento. Não foi uma experiência intelectualista, pelo menos no sentido de uma tarefa sedentária e maçante. Meu pensamento se deparou com espaços arquitetônicos que só demandaram dele a atenção de um caminhar, e nada mais. Ao simples ato de atentar-se e prosseguir, meu pensamento aqueceu sua musculatura, fortaleceu suas articulações e sentiu o próprio esqueleto, enquanto se encantava com manifestações artísticas daquilo que o limita de fora. Cada uma das cidades de Calvino ergue uma aporia, fazendo o desconhecido se apresentar efetivamente, no ato de um contato físico do pensamento com o inconsciente. É por isso que, num momento em que estamos confinados ao que há de mais imóvel, reduzidos ao pragmatismo cotidiano da casa e do trabalho, esse livro aparece como um remédio. Ou melhor, como uma verdadeira prática de saúde mental.

15/04/21

que se abra

 



A cada quadrado no calendário
um bloco de cimento no sonho.
Conforme a geração se acaba
consumindo a si mesma,
nem mais em pensamento
se acessam utopias.
Não existe mais o fora,
não se está dentro de nada,
não há terra que se almeje;
o paraíso em nossas palmas
multiplica-se nos ares,
programando para sempre
os resquícios celestes.

A falta da imaginação
que engendrasse um bom viver,
a super vigília,
o ultrassonífero,
e o apagamento instantâneo
sob a luz do silício.

Inimigos vivendo encaixados
e impedidos de roçar
as vistas.
Militares ou militantes,
suas noites são a mesma
intranquila opacidade.
O horizonte se aproxima
junto às paredes do quarto
e a única saída é uma veia
que se abra.

Mas se ilude quem pensa
ser o cárcere maior
este corpo encarnado no cimento.
Nossa alma já não mais
encontrará refúgio.
E do lar primordial
só restarão relógios.

A única via é aquela
que ainda não existe,
mas que se indica
em algum lugar
da palavra barricada
ou aquela que se pensa ouvir cantar
quando o riso de um tambor
faz sair, por um momento,
do papelão um caracol.